Crítica sobre o filme "Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita":

Eron Duarte Fagundes
Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 02/11/2010

Não é por acaso que Investigação de um cidadão acima de qualquer suspeita (Indagine su um citadino al di sopra di ogni sospetto; 1970), rodado na Itália por Elio Petri, vai apor à sua narrativa, antes dos créditos finais, uma frase do escritor tcheco Franz Kafka que fala do servidor da lei e, de viés como Kafka gostava, das relações deste servidor com a própria lei. No filme de Petri a trama se estabelece claramente desde o início: um investigador da Divisão de Homicídios assassina sua amante e telefona para sua própria delegacia, dando o local do delito mas não se identificando e muito menos apontando-se como o criminoso. Ao longo do filme, vai rolar a investigação, dirigida pelo próprio investigador-criminoso. O espectador já sabe quem matou (uma das perguntas clássicas da trama policial é, pois, abolida) e o que vai interessar a Petri é observar como se estabelece o corporativismo policial e judiciário numa sociedade repressiva e de classes; mesmo que o investigador finalmente resolva admitir o crime, seus pares destroem suas provas  contundentes e o obrigam a assinar sua confissão de inocência.

Petri é um dos mestres do policial-político, gênero que vicejou no cinema dos anos 70. Diversamente do greco-francês Constantin Costa-Gavras, de onde se exalava uma emoção mais assimilável pelo público, Petri é um cérebro em ação; sua câmara instável e nervosa, em movimentos que busquem reequilibrar os desequilíbrios dos intérpretes em cena, é dirigida com frieza e cálculo por alguém que está construindo um teorema cinematográfico. A estética matemática pertence a Petri tanto quanto aos também italianos Michelangelo Antonioni e Valerio Zurlini. São planos-pensamento. O jogo do pensar com o absurdo das situações em Investigação de um cidadão acima de qualquer suspeita emula aqueles círculos de raciocínios excêntricos mas lógicos utilizados pela alemão Alexander KLuge em Ferdinand, o radical (1976). Se o agente de segurança Ferdinand, de Kluge, quer derrubar sua própria estrutura lógica acertando as brechas dos sistema de segurança com ações terroristas, o investigador de Petri estabelece relações ambíguas com as leis a que serve, revelando o quanto elas não servem quando a respeitabilidade de classe é o que mais interessa. Os raciocínios circulares de Petri e Kluge se assemelham, criando conflitos íntimos no observador.

Além da direção constantemente criativa de Petri, Investigação de um cidadão acima de qualquer suspeita conta com duas peças interpretativas antológicas. O engajado ator italiano Gian Maria Volontè tem uma performance crítica assombrosa na pele do investigador e a atriz brasileira (nascida no Ceará) Florinda Bolkan como a vítima que exibe força e sensualidade se casam muito bem em cena.

Como é habitual nas realizações de Petri, as frases-chavão da esquerda da época são esbravejadas por militantes (estudantes, operários, ativistas). E ouvimos coisas arcaicas como: “Todo o poder à classe operária!”, “Morte aos patrões!”, “Servos dos patrões!”. Funcionam como adereços de época da tragédia íntima do protagonista, uma alma torturada por si mesma.