Crítica sobre o filme "Coração Selvagem":

Eron Duarte Fagundes
Coração Selvagem Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 17/07/2012

Coração selvagem (Wild at heart; 1990) é um exercício intermediário das demências do cineasta norte-americano David Lynch, que chegaria a seu ponto extremo de loucura no último filme que realizou, Império dos sonhos (2006). Embora debulhando suas excentricidades disparatadas diante das câmaras , pode-se dizer que mesmo uma esquizofrenia visual tão grande quanto Império dos sonhos produz uma organicidade cinematográfica a que poucos diretores têm acesso. Como diria uma personagem de William Shakespeare, “loucura embora, lá tem seu método”; no caso de Lynch, o que organiza a loucura do indivíduo é o método cinematográfico inserido no realizador.

Em Coração selvagem este método (ou organicidade) é mais facilmente detectável do que em seus trabalhos mais recentes. Mas Lynch não desdenha de seu circo entre o barroco e o cubista. Sailor e Lula, jovens e atrevidos, delirantes e apaixonadamente perdidos, cruzam a narrativa em fuga e amor (fuga e amor selvagens e sexuais); Lynch introduz alguns rápidos planos de memória que quebram o possível classicismo narrativo, mas, se aqui e ali estorvam a fluência do conto, o mais das vezes, e com o andar da carruagem, passam a adicionar à textura fílmica elementos da criatividade de Lynch. Às vezes ameaçador, às vezes duramente violento, Coração selvagem põe à roda de Sailor e Lula, apaixonados e perigosos, uma fauna que faz o amor deles arriscar, como a personagem de Bobby Peru, que exercita uma sedução sobre Lula para depois a abandonar em plena excitação: é uma das mais densas cenas de sexo da história do cinema, feita com um linguajar e expressões brutalmente vulgares a que Lynch transmite sua própria densidade, algo como faz outro americano, Quentin Tarantino, por outros métodos para recriar a trivialidade dos submundos: nesta cena de Bobby e Lula o enclausurado cenário do quarto, com as cores também fechadas e puxando para um sexo duro, é dado fundamental com que Lynch joga.

Demais, o elenco de Lynch exubera em Coração selvagem. Nicolas Cage, antes de estereotipar seu jeito interpretativo, mas já com os trejeitos de sempre, está solto e veraz e forma com Laura Dern uma química de encenação notável. À volta deles, Diane Ladd transborda, Willem Dafoe está característico e a aparição breve de Isabella Rossellini é a reutilização do fetiche visual que fora um dos marcos do cinema de Lynch no controvertido Veludo azul (1986). Mesmo com seu final conciliador e amoroso, Coração selvagem adota as características melodramáticas com um sarcasmo que metamorfoseia o conciliador e o amoroso do final. Cage, ele próprio cantando no final “Love me tender”, de Elvis Presley, acaba dando, nas mãos de Lynch, um novo sentido à cafonice sentimental do rei do rock naquela primeira estrofe da famosa canção: “Love me tender / Love me sweet / Never let me go / You have made my life complete / And I love you so.”