Crítica sobre o filme "Melinda e Melinda":

Eron Duarte Fagundes
Melinda e Melinda Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 13/06/2005

O plano de abertura do filme mostra a fachada superior duma cafeteria. A câmara se movimenta lateralmente para a direita, depois desce um pouco e vai entrando pela porta do bar; todo o movimento é executado com medida lentidão; no instante em que as primeiras palavras do texto fílmico começam a revelar o tema do diálogo e de toda a narrativa, questionar se a vida é essencialmente trágica (como diz essa frase inicial) ou cômica, uma fusão de imagens vai colocar a câmara à mesa de discussão das personagens. Melinda e Melinda (Melinda and Melinda; 2004) é uma nova amostra da inteligência, do brilho e do rigor formal do cineasta norte-americano Woody Allen; a sombra do realizador francês Eric Rohmer é a mais perversa na intensa dialogação de Allen, que acrescenta às sutilezas de seu mestre gaulês uma acidez judaica que, quando bem realizada, abre seu cofre cinematográfico mais pessoal.

Todo o novo filme de Allen é uma construção narrativa da conversação entre as criaturas à mesa da cafeteria. Na verdade, Allen está discutindo a essência de seu próprio cinema, que oscila entre o drama e a comédia com referências auto-irônicas. Para manter uma visão mais distanciada do problema, Allen se ausenta do filme como ator; atrás da câmara, seu perfeccionismo para elaborar o desempenho de seu elenco atinge o apogeu, buscando para cada intérprete jeitos cênicos tão rigorosos quando deslumbrantes em seus significados. Neste aspecto, novamente o cinema Allen presta tributo à precisão francesa de Rohmer: os atores de Allen parecem muito rohmerianos em contenção e espontaneidade misturadas.

As visões dos dois dramaturgos que principiam a contar a mesma história sob dois pontos de vista (um cômico, outro trágico) à mesa da cafeteria se entrecruzam admiravelmente ao longo de Melinda e Melinda. A discussão sobre o que é essencial, o choro ou o riso, remonta, como tudo, aos gregos, com Heráclito defendendo a profundidade das lágrimas e Demócrito preferindo as revelações das risadas; mas Allen dá sua contribuição muito contemporânea para o assunto. E uma visão contemporânea vai ter sempre um quê de cinematográfico. Mas isto não é o mais importante: como diz uma interlocutora encerrando os diálogos à mesa da cafeteria, o que importa é – quer como tragédia, quer como comédia — que saibamos aproveitar a vida.