Crítica sobre o filme "Amarga Esperança":

Eron Duarte Fagundes
Amarga Esperança Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 29/10/2012

O forte do realizador norte-americano Nicholas Ray são os melodramas policiais, que toparam no gênero noir em voga no cinema americano dos anos 40 e 50 um ambiente fértil com suas narrativas enviesadas e suas apropriadas tensões visuais em claro-escuro semi-expressionista. Ray é cultuado por um cineasta tão diferente dele, o alemão Wim Wenders, e não se sabe bem o que as personagens de Wenders podem ter bebido nas de Ray: talvez uma certa marginalidade itinerante; mas as composições são diferentes.

Amarga esperança (They live by night; 1948) é a obra de estreia de Ray, e sua belissima nervura estilística nada fica a dever aos momentos mais inspirados da filmografia do diretor (entre eles, Cinzas que queimam, 1951, e Juventude transviada, 1955). Embora admirado por europeus de diversas latitudes (o citado Wenders e o franco-suíço Jean-Luc Godard), pode-se dizer que o estilo de filmar muito americano de Ray (apesar de seu rigor, muitas vezes rígido, há aberturas para o senso de espetáculo requerido por Hollywood) influenciou mesmo os destinos de certos cineastas americanos, como, por exemplo, Terence Malick e alguma coisa de Arthur Penn. Isto se evidencia na transparência com que Ray une um caso de amor a uma trama policial em Amarga esperança, que é um grande filme apesar de um ou outro aspecto tateante de um diretor iniciante; é claro que, ao reutilizar os elementos de Ray, especialmente Malick tornou as tensões formais e temáticas mais complexas que aquelas esboçadas por Ray com um certo primitivismo mas com incrível segurança e engenho.

Partindo do romance Thieves like us, de Edward Anderson, o filme põe em cena o relacionamento amoroso entre Keechie e Bowie (antecipadores de Bonnie e Clyde?), ele um foragido da prisão, ela uma garota sonhadora do interior americano. Numa viagem de trem, quando o bebê duma estranha se põe a chorar, e Bowie o embala autorizado pelo olhar de Keechie, se antecipa a gravidez dela, que viria a seguir. Mas o trágico final (mais rápido e menos violento que aquele de Uma rajada de balas, de 1967, de Arthur Penn) desfaz o sonho de construir uma família dos dois jovens. A leitura da carta de despedida de Bowie (falando do amor à mulher e do filho por vir) e o primeiro plano do rosto da atriz Cathy O’Donnell enquadrado pela câmara de Ray são a excelência da poesia cinematográfica do cineasta.

Diz-se que esta produção foi considerada por sua produtora, a RKO Radio Pictures, sem valor comercial, e o filme mofou na prateleira algum tempo. No entanto, ao ser distribuído na Inglaterra, os aplausos da crítica e a presença do público o transformaram numa obra de estima. A produtora então decidiu lançar o filme nos Estados Unidos. Hoje, para além de ser o marco inicial da carreira de Ray, é uma obra marcante do cinema em qualquer época.