Crítica sobre o filme "Se Don Juan Fosse Mulher":

Eron Duarte Fagundes
Se Don Juan Fosse Mulher Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 23/09/2012

É bom examinar as impressões que se tem hoje do cinema do francês Roger Vadim à luz das considerações críticas da época em que seus filmes foram realizados. François Truffaut falava com entusiasmo de um “filme caderno de anotações”, e o que nos fica hoje é um realizador comercial, superficial, ligeiro: se críticos como Truffaut desancavam autores classicistas como René Clair, como podiam ser condescendentes com Vadim? Escreveu o ensaísta brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes em seu artigo “A descoberta da cama” (02.04.1960): “Se Vadim pôde cumprir a missão de renovar o cinema francês, deve-se ao fato de não ser ele, então, um cineasta preocupado  em exprimir ideias”. Renovar, Paulo, assim, cabe atribuir a Vadim o condão de renovar num tempo em que se estava vendo o nascedouro de Jean-Luc Godard, Alain Resnais ou mesmo do já citado Truffaut?

Se Don Juan fosse mulher (Don Juan, ou si Don Juan était une femme; 1973), um dos sucessos comerciais na década de 70, permite renovar esta discussão interna que o analista de hoje pode ter confrontando as mesmices mofadas que topa nas narrativas de Vadim com aquilo que gente como Truffaut dizia encontrar ali. Na verdade, a renovação que atribuem a Vadim está na ousadia sexual, embora, passados tantos anos, parecem cenas para freiras; mas está certamente incrustado na história do cinema o arrojo de provocar a libido do espectador jogando, nuas, na cama a francesa Brigitte Bardot (num determinado primeiro plano da sequência suas unhas belamente esmaltadas se movem em torno da pele de sua parceira) e a inglesa Jane Birkin. É, como diz o artigo de Paulo Emílio, a descoberta da cama no cinema que fez a cabeça do espectador da época; é curioso observar que Truffaut, que admirava estas coisas em Vadim, foi muito mais longe esteticamente nestas proposições (espera-se que Truffaut, quando morreu na primeira metade dos anos 80, tenha percebido isto como crítico tardio). Mas a cama de Vadim (aqui e também em E Deus criou a mulher, 1956) envelheceu, está até quebrada em muitas partes, mas resiste como elemento do museu cinematográfico; Paulo Emílio ainda afirmava que “os leitos de outros filmes de Vadim, de Louis Malle, Alain Resnais ou Jean-Luc Godard são a descendência direta” do primeiro filme de Vadim, mas se vemos as cenas de cama de Os amantes, 1958, de Malle, ou de Uma mulher para dois, 1961, de Truffaut, o abismo criativo é profundo em desfavor de Vadim —talvez porque somente a distância no tempo pode dar esta capacidade de percepção.

O que vale também é rever uma já madurona mas em forma Mademoiselle Bardot (é como lhe chamam nos créditos). Vadim, o francês tolo e vadio, e sua bobinha gostosa. Em O desprezo (1963) o casamento fílmico é outro: o francês inteligente, Godard, e a  gostosinha bem dirigida, Bardot. A britânica Jane Birkin, uma década mais nova, faz um belo dueto com Bardot; Birkin foi mulher do cantor francês Serge Gainsbourg, que a transformou numa mulher-homem ao dirigi-la em seu filme Paixão selvagem (1976).

O fim do filme não deixa de conter um certo moralismo, apesar de tudo. Quando a personagem de Maurice Ronet incendeia um local e deixa Bardot como ardendo no inferno entre chamas, é como uma punição ao Don Juan de saias, onde já se viu!

Vadim, com uma espécie de barroquismo desengonçado, mistura várias influências gaulesas. Superficializa o espiritualismo de Robert Bresson, inserindo a figura dum padre que é primo da protagonista. Acavala o “caderno de anotações à Jean Renoir. E finalmente faz desandar a fantasia feérica ao modo de Marcel Carné, com cenários exuberantes e espelhos multiplicados.