Crítica sobre o filme "Deus da Carnificina":

Eron Duarte Fagundes
Deus da Carnificina Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 30/10/2012

Com exceção das imagens iniciais e das imagens finais, Deus da carnificina (Carnage; 2012), o novo filme do polonês Roman Polanski rodado a partir duma peça teatral da francesa Yasmina Reza, se passa inteiramente dentro dum apartamento. Este processo de enclausuramento da câmara não é novidade no cinema de Polanski: em Repulsa ao sexo (1965) e O inquilino (1976) o rigor claustrofóbico da encenação do cineasta é paroxísmico. A forma atual de Polanski não permite que Deus da carnificina atinja este êxtase particular; o que ocorre aqui é um pouco como se Polanski (e sua corroteirista Reza) vertesse para seu universo um pouco do jogo de espelhos do sueco Ingmar Bergman em Cenas de um casamento (1974), vulgarizando ou tornando mais popular aquilo que em Bergman é pura metafísica (em Deus da carnificina as coisas se aproximam às vezes duma comicidade televisiva contemporânea —os casais se vão convertendo nos próprios trapalhões...).

A imagem inicial mostra uma briga de garotos num parque. A imagem final mostra os garotos reconciliados. O filme se desenvolve mostrando dentro dum apartamento dois casais que discutem a briga entre os filhos, onde um filho feriu o filho do outro casal. Este pretexto inicial logo se perde nas divagações que se centralizam na exposição dos problemas de cada casal: o homem de negócios que irritantemente não se desliga de seu celular, a mulher submissa que se embebeda e joga os podres, e por aí vai. Em determinado momento as duas mulheres se voltam contra os machos; mas isto dura pouco: são cenas dos dois casamentos as que mais perduram. A conversa, que era para ser rápida, constantemente ameaça terminar mas sempre uma última provocação a estende.  A impossibilidade de sair de um local é uma situação kafkiana que já rendeu títulos memoráveis no cinema: em O anjo exterminador (1962), do espanhol Luis Buñuel, um grupo de pessoas que se reúne para jantar inexplicavelmente não consegue sair da sala; em Depois de horas (1985), do americano Martin Scorsese, um homem que saiu às ruas não logra sair delas e voltar para casa. Deus da carnificina está longe destes prodígios: o texto teatral não tem inspiração, nem dramática nem linguística, mas a direção hábil de Polanski e o engenho e a química de seu quarteto central de atores (Kate Winslet, Christoph Waltz, Jodie Foster e John C. Reilly) fazem com que Deus da carnificina supere seus limites e se converta num espetáculo aprazível.