O cineasta brasileiro Walter Salles se especializou em fazer filmes em que a câmara cinematográfica (que é sempre o alter ego de um realizador) cai na estrada. Na estrada (On the road; 2012) vai buscar na literatura espontaneamente impetuosa do americano Jack Kerouac motivações de roteiro para esta nova viagem, que sucede a outras por Portugal (Terra estrangeira, 1996), pelo Brasil do centro do Rio aos confins do Nordeste (Central do Brasil, 1998) e pelos rincões ignotos da América desconhecida (Diários de motocicleta, 2004).
Na estrada não se sai de todo mal ao utilizar certos elementos de contestação da arte de Kerouac, porém o retrato social e humano vertido por Salles é estático, mais do que isto, formalmente quadradão e sem a força vital que as personagens provocativas de Kerouac poderiam render se o diretor fosse menos apegado a esta coisa de fazer uma produção correta, para americanos, de ostentação internacional. Os compromissos comerciais de Salles a esta altura dos acontecimentos é que impedem Na estrada de alçar um voo crítico mais alto; os que não gostam de seu cinema dirão que lhe falta talento, o que Na estrada na maioria de seus fotogramas contradiz, dizendo o contrário —há talento, sim, o que falta é ousadia.
Salles se esforça por dar uma certa densidade às criaturas de Kerouac. E o faz às vezes de maneira artificiosa e pedante, recorrendo à capa de um livro do irlandês James Joyce, à discussão sobre a tradução de um texto do francês Louis Ferdinand Celine ou à leitura de um trecho de O caminho de Swann, um pedaço do romance-rio de Marcel Proust. É mais uma afetação superficial do que uma naturalidade profunda, aquele tipo de natural que há no romance de Kerouac em suas referências culturais.
Uma das coisas pela metade do filme de Salles é transformar a criatura de Garett Hedlund, loiro e perigoso, numa reencarnação do poeta francês Arthur Rimbaud, alguém capaz de tocar com o “mal benfazejo” aqueles com quem cruza. No início é interessante; depois decai; como o próprio Na estrada. O elenco é coloridíssimo, incluindo diferentes personas femininas como Kirsten Dunst (a que no passado amou o homem-aranha) e Kristen Stewart (a que há pouco amou um vampiro), a brasileira Alice Braga como uma breve andarilha do sexo e o despudorado homossexual vivido por Steve Buscemi que é comido escandalosamente por Hedlund cujo corpo nu se debruça sobre a nudez de Buscemi.
Frigindo os ovos, se Na estrada está longe do topo alcançado literariamente por Kerouac, vale a pena ser visto graças a um certo talento de filmar de Salles — talento aqui mais frio e ossificado que aquele de Terra estrangeira e Central do Brasil. Influenciado diferentemente pelos europeus Alain Tanner (suíço) e Wim Wenders (alemão), o que certamente está atrapalhando as invenções cinematográficas de Salles é a insistência em fazer filmes necessariamente embutidos na indústria.