O pesadelo nuclear, iniciado com a explosão da bomba H nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945, foi o início de décadas de temores e incertezas para a humanidade, e ele teve reflexos diretos na ficção científica cinematográfica a partir da década de 1950. E no cinema, nem sempre a ameaça era a bomba em si, mas também os efeitos de sua radioatividade, capaz de provocar mutações, morte lenta e, pelo menos no celuloide, trazer de volta à vida monstros pré-históricos.
Um dos subgêneros do sci-fi mais populares surgidos na época, o do “Monstro à Solta”, foi inaugurado pelo impactante O MONSTRO DO MAR (THE BEAST FROM 20.000 FATHOMS, 1953), cujo roteiro de Fred Freiberger (da série clássica de JORNADA NAS ESTRELAS) baseou-se em um conto do celebrado escritor Ray Bradbury, sobre um dinossauro que ataca um remoto farol litorâneo. Expandindo o conceito literário original, a produção em preto e branco de Us$ 200.000, dirigida por Eugène Lourié, mostra a tal criatura, agora batizada como Rhedossauro, ser tirada da sua hibernação por testes nucleares no Pólo Norte e iniciar uma jornada submarina rumo a Nova York, localizada onde, há milhões de anos, a espécie se procriava. Após atacar bascos pesqueiros, o farol do conto de Bradbury e um sino de mergulho, o monstro chega à metrópole e espalha terror e destruição no melhor estilo de KING KONG (1933).
O elenco praticamente desconhecido, do qual hoje são lembrados apenas Kenneth Tobey (que seria presença habitual nos filmes de ficção científica do período) e o futuro durão Lee Van Cleef, que surge numa ponta ao final, sem dúvida não é o forte do longa. Os verdadeiros astros, como em KING KONG, são os efeitos stop motion(animação quadro-a-quadro) do Mestre Ray Harryhausen, que aqui fez sua estreia nos longa-metragens. As cenas do Rhedossauro, devorando um policial e encurralado em meio a uma Montanha Russa em chamas, são especialmente memoráveis. O resultado foi tão empolgante que a Warner acabou adquirindo os direitos do filme independente, e o lançou mundialmente com grande sucesso. Em 1961, Eugène Lourié dirigiu na Inglaterra o similar GORGO, outro cultuado exemplar do gênero que trazia não um, mas dois monstros gigantes à solta em Londres.
O sucesso de O MONSTRO DO MAR ecoou no Japão, então recém saído da ocupação norte-americana iniciada após o final da Segunda Guerra Mundial. Sem a presença ianque em seu território, os nipônicos finalmente estavam livres para mostrar os horrores da hecatombe nuclear por eles sofrida. GODZILLA (GOJIRA, 1954), dirigido por Ishiro Honda, não foi o primeiro e muito menos o último filme a tratar do assunto, mas sendo uma alegoria sci-fi repleta de destruição e efeitos visuais impressionantes para a época, foi o mais eficaz por causa da repercussão mundial que teve. A exemplo do Rhedossauro, Godzilla foi trazido de volta à vida por testes nucleares, desta vez os realizados pelos norte-americanos no Pacífico, não muito distantes da costa japonesa. Fatos verídicos são citados ou adaptados no filme, como a contaminação radioativa de peixes e a morte da tripulação de um barco pesqueiro. Com um custo estimado de Us$ 1 milhão, GODZILLA substituiu os modelos animados stop-motion por uma técnica tradicional do kabuki, o teatro folclórico japonês: a de atores, devidamente caracterizados, representarem demônios ou animais. Assim, Haruo Nakajima foi encarregado de vestir a pesada (100 quilos!) fantasia de Godzilla e destruir detalhadas maquetes de Tóquio e carros e trens em miniatura.
As tocantes imagens da cidade em ruínas após a passagem do monstro e, principalmente, das vítimas da radiação por ele emitida, em cenas musicadas com força pelo maestro Akira Ifukube, refletem diretamente o pesadelo de Hiroshima e Nagasaki. Assim, através da ficção, os realizadores de GODZILLA se referem aos norte-americanos e cientistas criadores de armas de destruição em massa – estes representados no filme pelo Dr. Serizawa (Akihiko Hirata), que após usar contra Godzilla o “Destruidor de Oxigênio”, para evitar que sua invenção fosse usada para o mal, comete suicídio. Tirando os aspectos relativos à tragédia atômica e seus elementos de espetáculo, GODZILLA possui uma trama simplória, que envolve um triângulo amoroso nada convincente. Mas que garantiu a entrada do estúdio Toho para a história e inaugurou um popularíssimo “subgênero do subgênero”: o dos filmes dekaijus (monstros gigantes japoneses), que incluem várias continuações com o lagartão, longas de “colegas” como Rhodan e Mothra e até mesmo dois remakesestadunidenses.
O grande sucesso internacional de GODZILLA fatalmente o levaria ao rentável mercado dos EUA, e isso aconteceu em 1956. Com seus direitos de distribuição adquiridos pelo produtor Joseph E. Levine e rebatizado como GODZILLA: O REI DOS MONSTROS (GODZILLA: KING OF THE MONSTERS!), o filme da Toho chegou por lá após passar por significativas mudanças de edição – tantas que parece outro filme. Para tornar o filme mais acessível ao público norte-americano, Terry O. Morse foi escalado para dirigir várias cenas com o ator canadense Raymond Burr (o futuro Perry Mason e Ironside da TV) interpretando o jornalista norte-americano Steve Martin, que acompanha e muitas vezes narra em off os acontecimentos do filme. Quase 30 minutos do filme original foram eliminados (que, “coincidentemente”, incluíam algumas cenas mais incisivas nas críticas aos testes nucleares do Pacífico), e boa parte dos diálogos em japonês foi redublada para o inglês. Basicamente, todo o filme foi remontado por Morse para que o personagem de Burr se tornasse o principal, relegando os demais à condição de coadjuvantes. Como as cenas adicionais foram rodadas nos EUA, em todas as tomadas onde Martin contracenava com os personagens originais foram usados dublês do elenco japonês, filmados de costas ou de lado. Apesar de adulterada (e talvez até por isso), essa versão inferior teve ótima recepção nos Estados Unidos e por muitos anos foi a mais popular. Felizmente, graças ao advento do home video a partir dos anos 1980, o GODZILLA original hoje é o mais conhecido mundialmente.