Crítica sobre o filme "Fellini 8 1/2":

Rubens Ewald Filho
Fellini 8 1/2 Por Rubens Ewald Filho
| Data: 01/07/2016

Uma obra-prima de Federico Fellini (vencedor do Oscar de filme estrangeiro e figurino Piero Gherardi, indicado também como direção, direção de arte e roteiro). Certamente o filme preferido da maior parte dos cineastas (esta sempre entre os dez primeiros de todos os tempos da critica).

Foi homenageado por vários cineastas que chegaram ao luxo de fazer filmes inteiros sobre ele, verdadeiras refilmagens. Entre eles, Woody Allen (em Memórias/Stardust Memories, 1979); Bob Fosse (All that Jazz, o Show deve Continuar, também 1979), Paul Mazursky (Um Doido Genial/Alex in Wonderland, 1970, onde o próprio Fellini fez ponta). Também foi adaptado para um show da Broadway musical estrelado por Raul Julia (Nine) e depois em remontagem por Antonio Banderas. Também como Nine (Idem) foi filmado por Rob Marshall em 2009, com Daniel Day Lewis, Sophia Loren, Marion Cotillard e Penelope Cruz.

Já perdi a conta das vezes que assisti ao filme. Tive a sorte de ainda pegar a estreia dele (que foi em grande circuito, nada de pequeno circuito de arte), distribuído pela Columbia. Na época o cinema italiano era grande bilheteria no Brasil e o filme provocou polêmica, mas foi muito bem recebido. Depois passou com frequência na televisão, onde por sinal perde muito ainda mais dublado por causa daquela famosa técnica do diretor, de dublar todo mundo. Ele adora mostrar rostos e tipos diferentes e como geralmente essas figuras eram amadoras, eles não decoravam textos, diziam apenas números (1,2,3,4 etc.) num determinado ritmo e depois Fellini colocava o texto dito por profissionais. A dublagem em português iguala tudo, frases banais que não tem importância com outras que explicam o filme e o que esta sucedendo.

Fellini Oito e Meio não é um filme fácil. Mas para mim o impressionante é que a cada revisão eu descubro alguma coisa nova. Agora com a notável qualidade da edição da Criterion e o IMDB para pesquisar descobrir algumas trivias curiosas. Por exemplo, o rapaz que faz o admirador de Anouk Aimée é o mesmo Mark Herron (1928-96), que embora fosse gay assumido chegou a se casar com Judy Garland entre 1965 e 69! Seu parceiro de vida foi o coadjuvante Henry Brandon (1912-90) que fez mais de 170 trabalhos no cinema e TV (entre eles Rastros de ódio). A moça que faz a dançarina francesa Jacqueline Bonbon (Yvonne Casadei) que está sendo expulsa do harém depois seria a empregada de Giulietta Massina em Julieta do Espíritos.E a francesa Madeleine Lebeau que faz a atriz vestida de rede, inquieta com seu papel foi casada com o ator Marcel Dalio e faz papel de refugiada no lendário Casablanca (estava exilada na época nos EUA e mais tarde faria filmes na França).

Tenho especial paixão por Barbara Steele, a atriz inglesa que faz Gloria, amante de homem mais velho amigo de Mastroianni. Ela tem uma figura notável e marcante, havia feito filmes importantes (O Jovem Toerless), mas logo se tornaria imortal graças aos filmes de terror que faria na Europa, principalmente A Mascara do Demônio de Mario Bava (ainda esta viva e de vez em quando aparece num filme). E naturalmente Claudia Cardinale, deslumbrante como o símbolo da pureza e redenção pela primeira vez no cinema italiano falando com sua própria voz (que era rouca e por isso diferente mas que ele assenta muito bem).

Mas quem rouba esta edição é Sandra Milo, que tem uma entrevista longa que é um verdadeiro show, um mon[ologo que ela interpreta como uma Diva, muito louca, mas brilhante, onde revela segredos (que foi 17 anos amante de Fellini, que queria que ela fizesse Gradisca de Amarcord) e faz charme escondendo outros. O curioso é que se trata de uma performance completa, carismática e eletrizante.

A fita é autobiográfica em todos os sentidos e apenas Mastroianni pôde ler o roteiro completo (ele compôs seu personagem usando chapéu, capa, maquiagem que lhe dá olheiras, tudo parecido com o diretor. Reparem como nos primeiros momentos ele é visto sempre de costas, depois esconde o rosto ate entrar no banheiro e só nas termas é que ganhará seu primeiro close).

Foi rodado como “Eu Confesso” (o nome veio porque Fellini havia estreado na direção codirigindo Mulheres e Luzes (Luci di Varietá, 50, com Alberto Lattuada). Então este foi o Oitavo (e meio) filme que ele dirigiu. Dali em diante quase sempre seus filmes teriam o nome Fellini incluído no titulo, o que é um caso único no cinema.

Muitas vezes fiquei intrigado vendo o filme por uma sequência em que aparece um mágico que faz um truque de adivinhação (que ele diz ser verdade, porque Fellini acreditava em fantasmas e magia). E a senhora que por sinal se chama Maia (ou seja, nome da deusa da Ilusão) escreve na lousa o nome: Asa Nisi Masa. Sempre percebi que era um código, como a linguagem do P que as crianças brasileiras usavam antigamente. Mas não tinha decifrado até agora, quando finalmente me surgiu o óbvio: quer dizer apenas Anima, que não é apenas traduzido como Alma, mas também a vontade interior que nos leva a fazer coisas ou ser determinada pessoa.

Oito e Meio é a história de um cineasta famoso em crise, que acha que não tem mais nada a dizer. Fica enrolando o produtor, a equipe, a estrela Claudia Cardinale (que faz ela própria além do símbolo da pureza), todos esperando suas instruções enquanto mistura lembranças do passado e imagens de sua fantasia. O filme foi notável por ter sido o primeiro a não explicar antes para o espectador o que está sucedendo. Passado, presente e imaginação podem estar convivendo no mesmo plano e tudo fica absolutamente claro. Mas na época era extremamente ousado e original. E agora escandaloso quando se pensa que fez Anouk Aimée interpretar a esposa lembrando abertamente a verdadeira mulher Giulietta Massina e que Sandra no fundo faz ela mesma! O filme começa com um pesadelo, uma das cenas de abertura mais incríveis do cinema (o personagem do diretor esta preso dentro de um congestionamento de transito num túnel, onde todo mundo parece estar olhando para ele. Começa a se afogar com fumaça mas consegue escapar dali e magicamente voa por cima dos carros e vai parar no céu numa praia, como se fosse uma pipa, um papagaio amarrado por uma corda a seus produtores! Tudo esplendidamente fotografado em preto e branco por um gênio Gianni di Venanzo (1920-66), que teve morte prematura e que dali em diante se supera com contrastes fortes, chegando aos limites do que era possível naquele momento (nesta edição tem depoimento do grande fotógrafo Vittorio Storaro fazendo o louvor dele e sua técnica inovadora e revolucionaria).

Tão seminal quanto Cidadão Kane, Oito e Meio foi também premonitório; Fellini realmente entrou em crise e o filme seguinte, A Viagem de Guido Mastorna, deixou inacabado conforme faz aqui o protagonista do filme (outro extra americano: o documentário A Director´s Notebook, que ele mesmo dirigiu para a TV americana, em cópia restaurada mas mesmo assim com problemas. É onde ele fala porque não concluiu Mastorna). Longe de ser um filme fácil, Oito e Meio é resiste análises e interpretações, muito ajudada pela magnífica trilha musical de Nino Rota (que faz ponta como maestro), o colaborador mais fecundo e importante na carreira do diretor (na edição americana, esse gênio é assunto de outro extra.o documentário alemão Nino Rota: Betweeen Cinema and Concert, que mostra onde lecionava em Bari).

A sequência final no circo Fellini imaginou de última hora e por isso nem todo o elenco pode estar presente. O final que rodou antes se passava num trem com todos vestidos de branco e a sequÊncia se perdeu, sobraram apenas algumas fotos.Também no americano, outro documentário The Last Sequence fala-se muito dela mas a maior parte das atrizes (Sandra, Anouk e Cardinale não recordam praticamente nada dela). A edição nacional da Versátil traz como bônus: O documentário Fellini, um Auto Retrato (52 min), depoimentos e Vittorio Storaro, Lina Wertmuller, Sandra Milo. Trailer de cinema.

O filme reflete muito a visão de mundo de Fellini. É seu confessionário, sua sessão de análise, sua mea culpa. Expõe abertamente seu egoísmo, suas fantasias, seus delírios com as mulheres (a grande sequência é a do harém). Para finalmente, depois de ter procurado respostas na religião, na família, na profissão, perceber que tudo começa com a própria aceitação, de si mesmo e dos outros, dos seus limites e dos outros. A vida é um circo, conclui ele, e o único jeito de se continuar vivendo é nós todos nos darmos as mãos, nos aceitarmos e sairmos dançando pelos picadeiros da vida.