Por um infortúnio do destino, embora reconhecido como um clássico absoluto, “A Paixão de Joana D`Arc” não foi visto na forma como idealizado pelo diretor por mais de 70 anos. Rodado em 1928, os negativos originais foram destruídos em um incêndio nos anos 30. O diretor Dreyer, para reconstruir o filme, utilizou takes alternativos que foram inicialmente descartados e, com esse material, criou uma nova edição. Não era tão boa como a original, mesmo porque os takes alternativos não representavam as melhores cenas ou interpretações que tinham ido para a edição original de 1928. Essa segunda edição também foi perdida em outro incêndio.
Durante os anos 50, vários takes alternativos sobreviventes, que não foram usados por Dreyer na segunda edição, foram localizados pelo historiador francês Joseph-Marie Lo Duca que, sem o envolvimento do diretor, criou uma terceira versão (hoje conhecida como “A Versão Lo Duca”). Essa terceira versão não foi aprovada por Dreyer, que a considerou uma aberração de sua obra por ter introduzido um prólogo narrado, trilha sonora inapropriada e mudanças na edição. Mas é certo que Dreyer exagerou na crítica, pois a versão Lo Duca não é exatamente ruim, mas apenas uma versão imperfeita de um filme perfeito. E, mais importante, durante décadas foi a forma como o filme foi apresentado ao mundo.
Milagrosamente, em 1991 foi encontrada uma cópia do negativo da edição original de 1928 em uma instituição psiquiátrica na Dinamarca. O diretor do estabelecimento, nos anos 20, era colecionador de filmes e adquiriu uma cópia da película original antes que esta se perdesse no incêndio. Essa película estava em ótimo estado, mas precisava de uma restauração para melhor conservação. No final dos anos 90 a restauração foi concluída e o filme passou a ser exibido em amostras de cinema e lançado em DVD nos EUA pela renomada Criterion Collection.
Há uns 5 anos o filme passou por um novo processo de restauração, mais moderno, o que resultou em uma imagem prestigiosa. Na Europa, a nova restauração foi lançada em Blu-Ray e DVD pela Eureka, sob o selo “Masters of Cinema”. Agora, em 2016, essa mesma edição é lançada no Brasil, apenas em DVD, pela Versátil, distribuidora especializada em grandes clássicos do cinema mundial.
A Versátil lançou no Brasil, em agosto deste ano, o DVD com a restauração mais recente do filme. A obra merecia uma edição em alta definição em Blu-ray, mas o DVD não faz feio. O filme é apresentado em duas versões de velocidade de projeção, 20fps (frames per second; quadros por segundo) e 24fps. O nosso padrão atual de velocidade de projeção é de 24fps, mas foi estabelecido no final dos anos 20 quando os filmes deixaram de ser mudos e passaram a contar com uma trilha de áudio. Para manter o áudio na forma natural como gravado, o padrão mundial de 24fps foi estabelecido.
Já os filmes mudos não tinham essa preocupação com sincronia de áudio, motivo pelo qual as velocidades de filmagem e de projeção podiam variar entre 16fps, 18fps, 20fps e 24fps. Com relação a “A Paixão de Joana D`arc” não houve um consenso entre os cinéfilos sobre a verdadeira velocidade de projeção nos anos 20. Há relatos de que o diretor Dreyer preferia a velocidade de 24fps, mas os movimentos dos atores ficam um tanto acelerados. A versão em 20fps é mais natural, mais suave. Para evitar descontentamentos e agradar a todos, a mais recente restauração do filme produziu as duas versões de velocidade, ambas presentes no DVD da Versátil. Em função da diferença de velocidade, cada versão tem uma duração diferente. A de 24fps, mais rápida, tem 81 minutos, enquanto a de 20fps, mais lenta, tem 97 minutos.
O filme é apresentando em tela-cheia, seu formato original, na proporção aproximada de 1.37:1. A imagem é sensacional, principalmente considerando os 90 anos de idade do material original. Riscos e manchas na película foram removidos digitalmente, bem como a imagem estabilizada. A nitidez salta aos olhos, com presença forte de detalhes nos rostos dos atores. O contraste está excelente também, com pretos bem definidos. Em suma, o filme parece ter sido rodado ontem, dada a excelência dos esforços na restauração.
Como é um filme mudo, há intertítulos, aqui apresentados no original em dinamarquês, com legendas em português. Dreyer determinava que o filme fosse exibido sem música, absolutamente mudo, para que a música não interferisse na experiência. No entanto, com o passar dos anos várias trilhas foram compostas para acompanhar ao filme. Neste DVD da Versátil, cada versão do filme é apresentada com sua própria trilha sonora. Sem prejuízo, quem quiser experimentar o filme na forma como desejado por Dreyer, pode simplesmente desligar o som. A versão em 24fps possui a trilha musical composta por Loren Connors. É uma música experimental, sombria e depressiva. Ela casa bem com as imagens, mas é pesada. A versão em 20fps possui a trilha do compositor japonês Mie Yanashita, especializado na gravação de músicas para acompanhamentos de filmes mudos. É uma trilha de piano, mais tradicional e melódica. É a melhor trilha presente no disco e a preferível para acompanhar ao filme. Em razão da diferença de velocidade e da trilha musicada, cada versão do filme é uma experiência diferente. Vale conferir as duas. Infelizmente essa edição em DVD não traz a brilhante trilha sonora orquestrada e com coral “Voices of Light”, de Richard Einhorn, que está presente no DVD americano da Criterion Collection.
Para quem quiser uma versão em alta definição, na Europa é vendido o Blu-ray pela distribuidora Eureka, mas com código de bloqueio “B”. No Brasil, como na América em geral, é adotado o código “A”. Então é necessário um player destravado ou multi-região para reproduzir o Blu-ray europeu. A edição europeia contém as mesmas duas versões do filme apresentadas no DVD da Versátil (20fps e 24fps), além da versão remontada nos anos 50, conhecida como “Lo Duca”.