O Nascimento de Uma Nação
É um fato triste que o primeiro grande e importante longa-metragem da História do cinema americano (e por extensão do mundo) tenha sido uma fita racista, que mal consegue esconder sua visão “sulista” do problema racial. Por isso mesmo, o prestígio do seu diretor David Wark Griffith (1874-1948) veio decaindo ao ponto de retirarem o nome dele do prêmio pela carreira dado pelo Director´s Guild. Embora ele pessoalmente negasse o fato de ter ideias racistas (sua fita seguinte foi o famoso Intolerância, que como o título revela é contra qualquer forma de “intolerância”), dizendo-se ofendido e magoado com as acusações (em alguns filmes ele teria demonstrado isso como fazer um branco beijar o amigo negro que está morrendo em The Greatest Thing in Life, colocando uma família de negros ajudando Mae Marsh em seu infortúnio em A Rosa Branca), insistindo que O Nascimento de uma Nação trazia bons e maus de todas as raças, que os verdadeiros vilões são branco. De qualquer forma, não há como negar que ele era um cavalheiro sulista, com ideias antiquadas e que no filme adotou esse ponto de vista (ainda que a favor de Lincoln, pró-União). Além de tudo, o filme é baseado numa obra literária, um livro e uma peça chamada The Clansman (o filme chegou a estrear em Los Angeles com esse título que só foi modificado depois quando chegou em Nova York), que foi escrito por um notório racista (que odiava negros), um pregador chamado Thomas Dixon, feito para louvar o trabalho da organização chamado Ku Klux Klan (na época, o sr. Dixon era famoso e tinha um grande público) embora esse autor fosse também admirador de Abraham Lincoln que considerava “o salvador e verdadeiro criador dos Estados Unidos Livres da América”. É também este o ponto de vista do filme (o filme segundo alguns testemunhos teria tido algumas cenas, depois descartadas, onde defenderia a ideia de Dixon de mandar os negros de volta para a África). Fica portanto complicado ficar louvando esse tipo de fita, ainda que tenha também títulos abjurando a Guerra (“o que a guerra pede é amargo, sacrifício inútil” e o mais famoso traz a frase: ”A paz da Guerra” e depois mostra um campo repleto de cadáveres no campo de batalha).
Porém como espetáculo, O Nascimento de uma Nação foi um épico esteticamente de grande importância, um monumento cinematográfico e um fenômeno que tirou o cinema das feiras de diversão (antes ainda era muito comum o “nickelodeon”, a maquininha onde você pagava um níquel para ver um trecho de fita individualmente) e trazê-lo para as salas de espetáculo, com status de arte e grande evento. Griffith também a reputação de ser “o pai do cinema” (René Clair chegou a declarar que “nada essencial foi acrescentado a arte do cinema desde Griffith”. Ou seja, desde este filme). Houve bons filmes antes e até longas europeus (Quo Vadis?, Cabiria) mas nenhum teve o alcance e repercussão deste. É preciso pensar que quando estreou a fita haviam passado apenas 50 anos da maior crise da História americana que havia sido a Guerra Civil (ou Secessão como erradamente a apelidaram no Brasil), portanto era um assunto muito polêmico. Mas tecnicamente o filme nunca foi questionado. Griffith fez tudo o que podia ser feito numa fita da época, inclusive recursos narrativos hoje meio fora de moda (tela dupla, máscaras, vinhetas, uso da Iris etc.) e também na edição, edita uma variedade de planos que era inédito até então.
Dividido em duas partes, a primeira termina com o assassinato de Lincoln, mas é na segunda que os “homens do Clã” é que passam a ter maior importância. O filme desde o começo faz o paralelo entre duas famílias , um nortista, os Stoneman e uma sulista, os Cameron (sugerido por um certo Thaddeus Stevens). E os problemas começam quando Phil Stoneman e Margaret Cameron se apaixonam. Chega a Guerra e os problemas, a casa dos Cameron quase é destruída enquanto os homens estão na Guerra. É depois da morte do presidente Lincoln, que não deseja vinganças que surgem os problemas para o Sul e por isso que Ben Cameron concebe a idéia da KKK, para proteger “a terra sulista” inclusive por causa de um certo Silas Lynch, que é um mulato que não é leal a ninguém e seria um mau sujeito (dele vem a palavra “linchamento”). Eles acabam se organizando, passando por vários incidentes e a fita termina dando a impressão que haverá uma ressurreição do Sul branco (com os negros desarmados e sem direitos). Tudo obra dos bons sujeitos da KKK.
Fica então o dilema e a conclusão: nem todo artista tem que ser necessariamente uma grande alma, um herói. O pai do cinema ironicamente era um racista com grande habilidade para contar histórias, aproveitar inovações, criar a linguagem de uma nova arte. É uma das grandes contradições com que o Cinema como arte e espetáculo de massas tem que conviver.
Intolerância
O grande diretor D.W. Griffith ficou inconformado com os protestos e críticas que sofreu devido a seu filme anterior, O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), onde justificava o racismo e até fazia a apologia da Ku Klux Klan. Decidiu então realizar essa superprodução sobre a intolerância em todos os tempos, da qual ele julgava estar sendo vítima. Mas rancores raramente produzem grandes filmes e este é prejudicado justamente por sua ambição, seu gigantismo desmesurado e moralismo forçado, tornando-se cansativo e até um pouco difícil de acompanhar (e dá para imaginar como o público da época, acostumado com histórias simples e lineares, deve ter ficado perplexo!). Mas as qualidades de Griffith como criador de espetáculo, em especial nas cenas da Babilônia, são evidentes, e seu arrojo técnico não tinha paralelo na época (só a ideia de contar várias histórias simultâneas, inédita até então, já diz muito da ousadia do diretor).
No entanto, a superprodução de dois milhões de dólares (O Nascimento de Uma Nação, que já era um filme caro, custou quase vinte vezes menos) nunca se pagou e atolou Griffith em dívidas e compromissos que iriam marcar toda sua carreira posterior. Sobrevive, porém, como um dos grandes filmes do período mudo e um dos mais famosos e lendários da história do cinema. Era uma característica de Griffith cartelas com comentários críticos: na sequência do mercado de esposas na Babilônia, em que elas ficam expostas para os maridos em potencial, o texto comenta que pouco mudou até hoje; ao mostrar as socialites de meia-idade que se dedicam a erradicar o que consideram vício, o texto da cartela ironiza dizendo que quando as mulheres deixam de atrair os homens tornam-se moralistas!
O diretor filmava em estúdios abertos ao ar livre, para aproveitar melhor a luz do sol, e em várias sequências pretensamente passadas em locais fechados dá para ver as roupas e cabelos se mexendo devido ao vento. A Mãe Eterna, que balança o Berço da História, interligando os episódios, é feita pela musa do diretor, Lilian Gish. Os futuros diretores Tod Browning, W.S. Van Dyke, King Vidor, Frank Borzage e David Butler fazem pequenos papéis ou figuração. O Erich Von Stroheim que figura nos créditos não é o famoso diretor austríaco, e sim um pseudônimo dado por Griffith ao ator William Courtright. Os irmãos Taviani fizeram em 1987 Bom Dia, Babilônia (Good Morning, Babilonia), que se passa nos bastidores do filme.