Crítica sobre o filme "Agnès Varda: La Pointe Courte, Cléo das 5 às 7, As Duas Faces da Felicidade, Sem Teto Sem Lei":

Rubens Ewald Filho
Agnès Varda: La Pointe Courte, Cléo das 5 às 7, As Duas Faces da Felicidade, Sem Teto Sem Lei Por Rubens Ewald Filho
| Data: 06/05/2018

La Pointe Courte ***

Um lançamento raro e importante. Nunca passou comercialmente no Brasil este filme que é considerado o pioneiro do que viria a ser a Nouvelle Vague, o movimento de críticos da revista Cahiers Du Cinema (com Godard, Truffaut, Chabrol e a própria Varda) que revolucionaram a maneira de fazer cinema na França. É notável que Varda ainda esteja viva, tenha ganho o Oscar especial em 2017 e foi finalista no Oscar de 2018 com seu documentário delicioso chamado Visages, Villages. Nascida em 1928, em Bruxelas, na Bélgica, foi casada, até a morte dele, com o diretor Jacques Demy (Os Guarda Chuvas do Amor, Duas Garotas Românticas) e conseguiu fazer este filme em preto e branco, sem pagar os atores, o casal central eram profissionais, o homem (não tem nome) era já o veterano Philippe Noiret (1930-2006) que iria se tornar um astro famoso de filmes como Cinema Paradiso, O Carteiro e o Poeta, Topázio etc. Silvia (1923-91) tinha uma figura exótica e fez filmes como Os Miseráveis, Esta Noite as Saias Voam, Rififi Entre as Mulheres. O filme é feito em duas partes, começa com cenas documentais de uma cidadezinha de pesca que fica perto do Le Canal de Sète, que liga L´Étang de Thaus ao mar mediterrâneo, chamada justamente La Pointe Courte (a visita de um inspetor do governo, a morte de uma criança) alternando com um casal que tem um relacionamento, ele é de lá, ela é parisiense. O filme custou 14 mil francos todo investido na parte técnica. O grande diretor Resnais (O Ano passado em Marienbad, Hiroshima mon Amour) foi quem montou o filme.

 

Cléo das 5 à 7 ****

Depois de La Pointe Courte, Varda continuou rodando curtas metragens até fazer seu próximo longa, que teria um enorme sucesso em todo o mundo. Este é seu segundo longa que fez com a ajuda de amigos (um monte de gente famosa faz pequenas aparições) num filme de sucesso, inclusive no Brasil, com produção do célebre Carlo Ponti (marido de Sophia Loren e Georges de Beauregard), com trilha musical do grande Michel Legrand. O mais interessante, tudo é feito em tempo real, dividido em capítulos e para muita gente uma homenagem ao cinema mudo. Ela chamou para o papel título uma atriz pouca conhecida, a loira Corinne Manchard (1937- ) que fez certa carreira (Lola, a Flor Proibida, O Passageiro da Chuva, Borsalino), trabalhando até hoje. Ela é uma jovem parisiense chamada Florence Victoire, mas que é também atriz e cantora, e usa o nome de Cléo Victoire que tem o dia mais longo de sua vida, numa terça-feira, quando tem que esperar entre cinco a sete da tarde pelo resultado dos testes que fez e que teme ser o câncer. Acha mesmo que será um câncer terminal. Mesmo encontrando com amigos, falando com o namorado José, encontrando novas canções, ela fica esperando pelo pior.

É uma historia original e nunca dantes vista no cinema, realizando de uma maneira diferente e especial (Varda outra vez utiliza 3 diferentes diretores de fotografia). E curiosamente segue o titulo, o capitulo final se encerra as 6h30. Exibido no Festival de Cannes, ganhou prêmio dos críticos franceses. Ainda hoje costuma estar entre os grandes filmes da História do cinema.

 

As Duas Faces da Felicidade *****

Este foi o filme que consagrou Varda, particularmente no Brasil, onde fez enorme sucesso de bilheteria por causa de sua beleza (a fotografia colorida é espetacular), mas principalmente por sua história de amor fora do comum e provocadora, que polemiza principalmente o público feminino. Ou seja, fez sucesso não como filme de arte, mas êxito popular. Ganhou Urso de Ouro e menção no Festival de Berlim, o importante Prêmio Louis Delluc. Parte de seu impacto se deve também ao fato da trilha musical utilizar temas de obras de Mozart, no caso Adágio e Fuga em C Menor e Quinteto de Clarinete em A-KV 581.

É curioso como até hoje na palavra de alguns críticos, o filme consegue ser chocante enquanto Varda afirma ser uma história sobre “o verão e as frutas que tem um bicho dentro”, ou seja, estão podres. O título original quer dizer Felicidade e é justamente ai que esta o problema. Com muita beleza e sinceridade, ela nos convence que essa figura poética não existe na realidade. Ou Talvez sim, dentre o sol de verão, crianças encantadoras, esposas idílicas e girassóis. Cabe ao espectador resolver.

O personagem central é François vivido pelo ator bonitão belga mas estranho Jean-Claude Druout (1938-) que na vida real ficou casado até hoje com Marie, que é sua companheira nas sequências iniciais deste filme. E continua a trabalhar principalmente em séries de TV. Ele faz François, um jovem carpinteiro do interior, que leva uma vida feliz e sem complicação, com a esposa Thérèse e duas crianças pequenas. Realmente eles são o retrato da felicidade, numa vida lírica. Até o dia em que ele conhece Emilie, que trabalha no correio local. Também loira e bonita, parece impossível de resistir.

Não vou contar o resultado da história e nem cair em spoiler. Vocês verão que o filme é emocionante, pode fazer chorar com sua resolução até mesmo inesperada. Mas o que é mesmo a felicidade? O filme pode explicar um pouco isso. De qualquer forma teve grande repercussão na minha vida e até hoje o considero uma obra-prima, ainda que polêmica. Mas de grande beleza e verdade. Um de meus filmes preferidos.

 

Sem Teto Sem Lei

Um título nacional (nos cinemas como Os Renegados) errado que faz pensar em um faroeste prejudica este filme cru e dramático que deu o importante premio César para a então muito jovem Sandrine Bonnaire. Também foi premiado pelo sindicato dos críticos franceses, críticos de Los Angeles (atriz e filme), National Critics (Sandrine), Sant Jordi (Sandrine), Leão de Ouro e críticos no Festival de Veneza. Mas é o trabalho mais trágico e denso de Varda.

A cena inicial já é muito reveladora, devagar através de uma paisagem de inverno, aos poucos vai se revelando a presença de um corpo congelado de uma moça morta. Aos poucos chegam os investigadores que não conseguem identificar nem o nome nem a idade daquela figura jogada na vala. Só então ouve-se a voz de Agnès que aos pouco vai revelando o mistério dessa garota e de seus últimos anos de vida. Uma jovem mulher que encontrou muita gente, que lhe deu coisa e bebida, cigarros e até sexo, na verdade ninguém a conheceu de verdade. O filme que tem jeito de documentário revela uma série de flash back dos últimos dias da vida dessa garota. O interessante porém é que se trata de ficção, ajudada pela notável interpretação de Sandrine (uma atriz sub estimada e que continua estrela até hoje). Aos poucos vamos ficando sabendo que ela veio de pais classe média, tentou estudar secretariado, que odiava trabalhar num escritório e eventualmente pôs o pé na estrada, carregando uma tenda e o pouco que possuía, pedindo comida e abrigo, às vezes fazendo algum trabalho em troca de dinheiro. Mas ela não fazia muita questão de viver. Chegou a ser ajudada por um casal de camponeses, mas não aproveita a chance, parece não tem ambição ou vontade. Cada vez mais vai assumindo uma vida de vagabundo...

Eu disse que o filme não era fácil porque não há melodrama, aos poucos a heroína vai descendo aos infernos. Sem resgate. Repito: certamente o filme mais duro e menos sentimental da diretora. Mais difícil também de apreciar.