Crítica sobre o filme "Jean Cocteau: Sangue de um Poeta, A Bela e a Fera, Orfeu, O Testamento de Orfeu":

Rubens Ewald Filho
Jean Cocteau: Sangue de um Poeta, A Bela e a Fera, Orfeu, O Testamento de Orfeu Por Rubens Ewald Filho
| Data: 29/06/2018

Poeta, dramaturgo e diretor francês Jean Cocteau nasceu em 5 de julho de 1889 em Maisons-Lafitte. Também pintor e ator, escreveu histórias para balé de Erik Satie, Stravinsky e também novelas, aforismos, além de desenhos e pinturas. Seus filmes, influenciados pelo surrealismo, expandiram os limites do cinema poético (também é interessante que desde os anos vinte o artista foi viciado em ópio). Muita gente vê em sua obra uma espécie de catálogo de suas obsessões, lembranças, crenças e fantasias. Por isso extremamente pessoais (embora pareçam ter influenciado até mesmo Buñuel) Escreveu peças e muitos roteiros para outros cineastas (A Princesa de Cléves, A Coroa Negra, Ruy Blas, 1947; La Comédie de Bonheur, 1940; L’Éternel Retour, 1943; Les Enfants Terribles, 1949, de Jean Pierre Melville - Cocteau teria dirigido um dia da filmagem quando o realizador ficou doente etc.). Só na década de 70 foi revelada sua ligação homossexual com o ator Jean Marais e o romancista Raymond Radiguet (autor de Le Diable au Corps).

Fez poucos filmes, mas interessantes.

O primeiro foi O Sangue de um Poeta (***) de 1930. Ainda no começo do cinema falado, inspirado pela chamada Avant-Garde passa-se num estúdio de artista, uma estátua inacabada ganha vida. Se movimentam os lábios de uma figura andrógina que está sendo pintada por um artista. O herói mergulha num espelho e passa por lugares estranhos como um corredor de hotel (espia pelo buraco da fechadura de várias portas), onde assiste coisas bizarras como gente fumando ópio, uma lição de roubo. O artista acaba virando também estátua. Depois vemos uma batalha de bolas de neve que termina tragicamente (tudo assistido por espectadores como num teatro). Seu coração vira parte de um jogo de cartas.

O filme dentro de sua época é um experimento, produzido por um mecenas, o Visconde de Noailles, que lhe deu toda liberdade, e ficou  inédito comercialmente no Brasil até ter sido lançado em vídeo. Cocteau admitia que sem perceber fez um auto-retrato (até as batidas de coração são dele mesmo) e que havia pensado antes em fazer um desenho animado (e por isso os filmes têm momentos que parecem animação).

Depois veio A Bela e a Fera (****), nem pensar no desenho da Disney, nem as diversas versões mais recentes. Esta aqui é a pioneira criação do Poeta Cocteau (também frequente dramaturgo e roteirista), que foi padrinho do primeiro Festival de Cannes e três vezes presidente do Júri. Embora seu estilo tenha se tornado um pouco pedante demais foi um artista celebrado em sua época (teve mais 900 obras, 32 instalações audiovisuais e depois de morte mereceu uma grande exposição onde se fez a tentativa de se fazer justiça à obra desta figura multiforme que foi uma figura maior da cultura de seu tempo, que passou por todas as contradições e peripécias. Sempre interferindo na sociedade em que viveu).

Ainda assim feliz ou infelizmente as modas passam depressa. O gênio de ontem pode estar completamente esquecido hoje. Ou vice-versa. Neste caso, é difícil se ter um juízo imparcial. Durante sua vida, Jean Cocteau foi considerado aquilo que chamam de Renaissance Man, um homem que sabe tudo, entende de tudo, não erra nunca. Culto, fino, ditava as normas do comportamento em sociedade. Conhecido como artista plástico (escultor, pintor, desenhista), era também dramaturgo, poeta, romancista e também diretor de cinema. Suas “películas” refletiam seu universo estilístico ficando num meio termo entre o baile de carnaval, o desfile de escola de samba, o kitsch requintado ou o simplesmente bizarro. Seu amante e astro Jean Marais é tão abertamente efeminado em seus primeiros filmes com ele, que chega a ser constrangedor (o mais curioso ainda é que na época ninguém percebia isso!). Por outro lado, ocasionalmente há boas ideias, conceitos emprestados aos surrealistas, principalmente no seu Orfeu mais do que em A Bela e a Fera. Aquilo que era considerado artístico em seu maior esplendor há mais de 60 anos atrás, hoje corre o risco de ser brega. Não se pode, porém negar a influência que Cocteau e sua obra tiveram tanto na França quanto no cinema de arte do resto do mundo.

 A Bela e a Fera de 1946 é sem duvida seu filme mais conhecido, um filme de arte francês super prestigiado pela crítica. O filme tem soluções visuais muito curiosas: os braços que seguram candelabros, as figuras da chaminé que fumam, os cães de pedra e principalmente a máscara da Fera (influenciada pelo artista Bérard). Certos detalhes fazem pensar na pintura de Vermeer. A intenção do cineasta não era fazer apenas um filme Fantástico, mas também uma obra grave sobre o amor e a morte. Tudo isso porém pode parecer também brega e artificial, posado e pedante. Ou poético e sublime... Você leitor decide!

Orfeu (****) de 1949 é seu filme mais famoso. Inspirado no mito grego fala de Orfeu um poeta que se envolve na morte de um rival e é convidado por uma estranha mulher, uma princesa para segui-la num Rolls Royce negro, sem desconfiar que é a própria Morte disfarçada. Apaixona-se por ela enquanto um criado, também já morto, Heurtebise, se apaixona pela mulher de Orfeu, Euridice que está em perigo de morte. Quando ela realmente morre, este o conduz até os infernos para tentar resgatá-la, sem poder porém olhá-la no rosto. O melhor filme de Cocteau, é preciso desculpar a teatralidade de Maria Casarès como a morte (ela tem porém uma figura impressionante e por isso seria grande sucesso nos palcos). Mas o filme é extremamente bem construído e contém efeitos especiais muito engenhosos utilizando temas recorrentes de Cocteau, como o espelho (por onde eles entram para o reino dos mortos, tem uma frase memorável e certa, fique olhando sempre para o espelho que você verá a morte, ou seja sua própria decadência que levará inevitavelmente à morte). Também a atualização para a época dos existencialistas em Paris é muito curiosa (a musa deles Juliette Gréco faz figuração apenas nas cenas iniciais e na invasão da casa).

A verdade é que fazer delírios poéticos é um gênero muito difícil e este Orfeu é dos mais estilizados e bem sucedidos (de forma que ficam marcantes os motoqueiros policiais que levam os mortos e outras imagens, como eles caminhando pelos infernos). Resiste uma revisão e junto com os outros filmes reabilita a obra de Cocteau, até agora quase só julgada por seu A Bela e a Fera.

Testamento de Orfeu (***) tem no nome original uma pergunta, Não me perguntem por que... O filme de 1959 reúne um elenco de amigos do diretor. Foi seu Último trabalho onde ele procurou realmente fazer uma espécie de Testamento, interpretando a si mesmo, numa fábula sobre as Mortes e ressurreições de um Poeta, recordando suas obsessões e inspirações. É uma ação entre amigos (atores famosos e até Picasso fazem pontinhas), já que o filme foi produzido por gentileza por François Truffaut (o que explica a ponta de seu alter-ego Jean Pierre Léaud), na região de Baux de Provence, um lugar árido. As citações de Orfeu são muitas, até com o retorno dos personagens daquele filme (feito pelos mesmos atores, menos Marais que faz aqui Édipo Rei cego). É basicamente um sonho (Cocteau dizia que o cinema torna real o irreal), cheio de referências mitológicas (como Homens Cavalos, Minerva, Antigona) e da utilização de alguns truques engenhosos que eram sua marca (como a flor de hibisco que se reconstrói). Ou seja, quem estiver familiarizado com a obra de Cocteau saberá curtir melhor este filme que havia ficado inédito comercialmente no Brasil. Um caso raro de um filme poema decifrável. Logo no começo, Cocteau o define como um “striptease de sua alma nua!” E o “legado de um poeta” que sonha o mesmo sonho.