Louis Malle (1932-1995)
Nunca fez parte oficial da Nouvelle Vague francesa, apenas surgiu no mesmo instante em que o movimento tomava força e importância. E muitos dos membros dela, nem gostavam de seu trabalho. Isso nunca foi problema para este cavalheiro do cinema, que teve uma das carreiras mais notáveis e coerentes de sua geração, só interrompida precocemente pelo linfoma do câncer. Justamente essa sua ausência de estilo e de obrigação com qualquer escola ou partido tenha possibilitado certas ousadias e meia dúzia de obras-primas. Excelente diretor de atores (poucos saberiam conter o veterano Burt Lancaster de forma tão magnífica quanto em Atlantic City, que deu a ele uma indicação ao Oscar), polemista por natureza (não bastasse a famosa cena de amor de Os Amantes repetiu a dose mais tarde comprando briga com a censura americana com outra cena de amor em Perdas e Danos. Sem esquecer sua quase explicita ilustração do complexo de Édipo em O Sopro do Coração). Politizado, denunciou preconceitos (como contra os vietnamitas na America em A Baia do Ódio), retornou regularmente ao documentário (o que fez sobre a China é considerado uma obra-prima) e não era avesso à experimentação (como quando fez um filme inteiro baseado numa conversa num jantar, aparentemente improvisada, Meu Jantar com André (inédito aqui comercialmente) ou fez uma leitura dramática da peça de Tchecov, Tio Vânia num teatro em ruínas na Broadway em sua última fita). Previu o calvário de estrela de Brigitte Bardot em Vida Privada, mas as obras-primas surgiram quando conseguiu dar um estilo distanciado e até frio para temas empolgantes como a prostituição infantil (Pretty Baby com a ninfeta Brooke Shields), o colaboracionismo com os nazistas na França Ocupada (Lacombe, Lucien), a história autobiográfica de sua infância numa escola católica e a amizade com um garoto judeu (Adeus, Meninos) e a própria impossibilidade de se viver (como em Trinta Anos esta Noite).
Nascido de família rica de diplomatas em 30 de outubro, em Thumeries. Estudou Ciência Política na Sorbonne e cinema no IDHEC. Estreou com o curta Fontaine de Vaucluse em 1953, foi assistente de Bresson, ajudando, em 1956, Cousteau a fazer seu Mundo do Silêncio. Em 1968-1969, uma viagem à Índia lhe rendeu o documentário em 16 mm, Calcutta, e uma série de TV, L’Inde Fantôme (sete epis.). Em 1972, planejou rodar um documentário na Amazônia. Seu Lacombe Lucien causou polêmica na França por causa do tema pouco confortável do colaboracionismo francês com os nazistas invasores na Segunda Guerra, mas acabou sendo um de seus melhores filmes. O sucesso de sua primeira produção americana (Prety Baby), que revelou a então pré-adolescente Brooke Shields, fez com que Malle se estabelecesse nos Estados Unidos, onde rodou filmes regularmente, com resultados irregulares. Atlantic City – rodado no Canadá – chegou a lhe dar indicação ao Oscar. Em 1982 dirigiu para o teatro e fez um documentário sobre uma comunidade rural em Minnesota para a TV pública americana. Seu projeto Moon Over Miami não foi realizado devido à morte súbita do ator e comediante John Belushi. Teve romances com estrelas como Brigitte Bardot, Susan Sarandon, Alexandra Stewart, Jeanne Moreau, mas se casou com a americana Candice Bergen (1946- ) (Murphy Brown, na TV) se tornando o único cineasta francês de sua geração que foi bem sucedido nos Estados Unidos (sem ter feito concessões comerciais), onde se radicou durante anos. Faleceu de câncer em Los Angeles, em 24 de novembro de 1995. Nos anos 90, uma retrospectiva quase completa de seus trabalhos no Brasil, promovida pelo Estação Botafogo ajudou a restaurar seu prestígio nunca abalado.
Eu o entrevistei uma vez no Copacabana Palace, onde estava tomando uma caipirinha que o ajudou a soltar a língua (confessou, por exemplo, que ao ser presidente do júri em Cannes, poucos meses antes tinha ajudado os amigos, afirmando o que adianta ser presidente se fosse não ajuda amigos!). Demonstrou um senso de humor que só fez aumentar minha admiração por ele e sua obra e lamentar sua morte prematura.
Filmografia
Dir.: 1953 – Fontaine de Vaucluse (CM). 1957 – Station 307 (CM). 1956 – O Mundo Silencioso (Le monde du Silence. Doc. Co-d. Jacques-Yves Cousteau). 1957 – Ascensor Para o Cadafalso (Ascenseur pour l’Échafaud. Jeanne Moreau, Maurice Ronet). 1958 – Os Amantes (Les Amants. Jeanne Moreau, Jean-Marc Bory). 1960 – Zazie no Metrô (Zazie dans le Metro. Catherine Demongèot, Philippe Noiret). 1961 – Vida Privada (Vie Privée. Brigitte Bardot, Marcello Mastroianni). 1962 – Vive le Tour (Doc.). 1963 – Trinta Anos Esta Noite (Le Feu Follet. Maurice Ronet, Jeanne Moreau). 1964 – Bons Baisers de Bangkok (Doc. TV). 1965 – Viva Maria (Idem. Jeanne Moreau, Brigitte Bardot). 1966 – O Ladrão Aventureiro (Le Voleur. Jean-Paul Belmondo, Françoise Fabian). 1967 – Histórias Extraordinárias (Histoires Extraordinaires. Epis. William Wilson. Brigitte Bardot, Alain Delon). 1969 – Calcutá (Calcutta. Doc.). Índia: Reflexões de uma Viagem (L´Indie Fantôme: Reflexions sur un Voyage. Doc.). 1970 – O Sopro no Coração (Le Souffle au Coeur. Lea Massari). 1974 – Humano, Demasiado Humano (Humain, Trop Humain. Doc.). Praça da República (Place de la Repúblique. Doc.). Lacombe Lucien (Idem. Pierre Blaise). 1975 – Lua Negra (Black Moon. Cathryn Harrison, Joe Dalessandro). 1976 – Close Up (Doc). 1978 – Pretty Baby – Menina Bonita (Pretty Baby. Susan Sarandon, Keith Carradine). 1980 – Atlantic City (Idem. Burt Lancaster, Susan Sarandon). 1981 – Meu Jantar com André (My Dinner with André. André Gregory, Walace Shawn). 1983 – Alta Incompetência (Crackers. Donald Sutherland, Sean Penn). 1985 – A Baía do Ódio (Alamo Bay. Amy Madigan, Ed Harris). 1986 – O País de Deus (Doc. Les Pays de Dieu). 1987 – And the Pursuit of Happiness (Doc.). God’s Country (Doc.). 1987 – Adeus, Meninos (Au Revoir les Enfants. Raphael Vejts, Gaspard Manesse). 1989 – Loucuras de uma Primavera (Milou en Mai. Michel Piccoli, Miou-Miou). 1992 – Perdas e Danos (Damage ou Fatale. Juliette Binoche, Jeremy Irons) 1994 – Tio Vânia em Nova York (Vanya on 42nd Street. Julianne Moore, Wallace Shawn).
Pretty Baby ****
Este Pretty Baby foi um dos mais polêmicos trabalhos de Malle, justamente porque ele abordava um tema totalmente inédito em cinema, contando a historia inspirada em fatos reais de garotas que era treinadas ainda semi adolescentes para se tornarem garotas de bordeis em New Orleans, muitas vezes orientadas pela própria mãe. Um detalhe curioso: quem faz o papel da mãe da Baby é justamente uma atriz famosa e premiada com o Oscar Susan Sarandon, que era amante de Malle na ocasião (e ainda continuaria por certo tempo e fariam juntos logo depois o ótimo Atlantic City). Outro escândalo, o filme transformou em estrela a adolescente modelo Brooke Shields que assim se tornaria famosa até hoje! Já que faz a filha de uma prostituta, criada em um bordel, onde cuida do seu irmão e se prepara para seguir os passos da mãe. Com doze anos tem sua virgindade leiloada e logo depois se casa com um fotógrafo bem mais velho do que ela. Recheado de música Black da época e figuras negras, o filme foi indicado ao Oscar de trilha musical (Jerry Wexler), também ganhou no Festival de Cannes, o Grande Prêmio Técnico. Embora um pouco esquecido hoje em dia, ainda é um clássico e prova do talento sempre variante do realizador.
Lua Negra **
O resumo mais simples diz: “Fugindo de uma guerra entre homens e mulheres, a jovem Lily vai parar em uma estranha casa. Dentro do imóvel abandonado, coabitavam uma velha senhora, eternamente deitada numa cama, um casal de irmãos, várias crianças, um porco, um rato, um unicórnio e muitos outros animais.” O IMDB conta que uma jovem tenta escapar a realidade e vai até o encontro com o bicho unicórnio, e onde vive uma família, irmã, irmão, muitas crianças e uma velha que não pode sair de sua cama. As novidades do mundo chegam pelo rádio. Apesar do prestígio do diretor francês Louis Malle, este é um de seus filmes menos conhecidos (mal passou no Brasil) e menos celebrados. E sempre foi considerado pouco mais do que uma desastrosa curiosidade. Dizia que o conteúdo do filme não era tão importante quando as imagens e alegorias, a trama não pode ser mais descrita além disso. Mas ele logo deu a volta por cima e passou a criar novos sucessos. Bizarro e esquisito, o filme foi rodado parcialmente na casa da família do diretor em Cahors, França. Ainda assim ganhou dois prêmios Césars, na França, fotografia e som.
Amantes *****
Hoje, tantos anos depois, é difícil avaliar o impacto que provocou esse filme do francês Louis Malle, pelos padrões atuais, delicadamente romântico e erótico, mas, na época, foi até taxado de "diabólico" pela imprensa do Vaticano e considerado obsceno pelos censores americanos, até uma histórica decisão da Suprema Corte liberar sua exibição. Também aqui no Brasil provocou celeuma, mas foi liberado sem cortes (e o cartaz mostrava apenas a mão da dupla na cena famosa na cama). Tudo porque Malle ousou mostrar sua heroína em pleno adultério (não apenas com um, mas com dois homens!) sem muita culpa, e ainda em uma cena de sexo com rápida nudez e uma ousada sugestão de orgasmo, que Truffaut definiria como "a primeira noite de amor do cinema". Um escândalo, mesmo com Malle tendo tido o cuidado de adicionar uma voz em off explicitando que as decisões da personagem não são tão fáceis assim, retratar o marido como desinteressado e manipulador e mostrar o mínimo possível a filha do casal. Jeanne Moureau, na época namorada do diretor, está no papel que a projetou internacionalmente. Faz a protagonista (também chamada Jeanne), casada com um dono de jornal muito rico (Cuny, de La Dolce Vita) e que, em uma vida de hedonismo e tédio, tem como amante um elegante jogador de pólo (o espanhol Villalonga), mas sua vida muda quando conhece totalmente por acaso um arqueólogo (Bory), que despreza totalmente sua vida de luxo e aparências. Nunca grosseiro nem óbvio, Malle narra tudo com discrição e delicadeza, com as cenas eróticas belamente emolduradas pela música de Brahms e pela fotografia de Henri Decaë. Um marco do cinema francês (e mundial), ganhou o prêmio especial do júri em Cannes.
Zazie no Metrô **
Nunca passou comercialmente aqui este filme menor de Louis Malle e dá para entender porque. É uma daquelas brincadeiras que a Nouvelle Vague gostava de fazer entre amigos, brincando com gêneros e fazendo piadinhas sem graça, no caso imitando o cinema mudo e as comédias clássicos, Estilo Mack Sennett. Mas é um filme irritante, desenfreado, prejudicado por uma atriz infantil horrível que obviamente nunca mais fez nada (ainda por cima interpreta um personagem de menina mal educada que fala palavrões, é cheia de vontades e inferniza o espectador). A comédia nunca foi o forte de Malle nem da Nouvelle Vague e por isso não funciona a brincadeira com o modo de vida francês da época, em tom de sátira visual. Livremente adaptado do livro cult de Raymond Queneau, deu a primeira chance de estrelato para o depois famoso Noiret (como seu tio) e que tem cenas notáveis no auto da Torre Eiffel, hoje impossíveis de serem reproduzidas. Mais infeliz é o ator italiano Caprioli que faz uma espécie de vilão (em mais de um papel) e um amigo taxista (Roblot). A Paris muito diferente da atual, surge de uma maneira inusitada. Malle encenou tudo com absoluta liberdade, por vezes até anárquica, usando colorido berrante, surrealismo, piadas hoje politicamente incorretas, muito humor pastelão. Querendo lembrar um desenho do Papa-Léguas ou Pernalonga! A mistura não funciona à perfeição e acaba por cansar de tanta loucura. O filme teria influenciado Richard Lester e seus filmes com os Beatles e teve como consultor de visual, o artista e diretor de arte William Klein. Este foi o terceiro filme de Malle e não tem alguma semelhança com nada que fez antes ou depois.