Crítica sobre o filme "Marcel Carné: Trágico Amanhecer, Hotel do Norte, Cais das Sombras, As Portas da Noite, Thérèse Raquin, Três Quartos em Manhattan":

Rubens Ewald Filho
Marcel Carné: Trágico Amanhecer, Hotel do Norte, Cais das Sombras, As Portas da Noite, Thérèse Raquin, Três Quartos em Manhattan Por Rubens Ewald Filho
| Data: 19/02/2019

Marcel Carné (1909-1996)

Diretor francês, responsável, com o roteirista Jacques Prévert, pela escola do Realismo poético, melodramas policiais de fundo trágico e pessimista que prenunciaram a derrota francesa na Segunda Guerra. Endeusado pela crítica, sua posterior falência artística parecia confirmar a suspeita de que Carné era superestimado, resumindo em si tudo que há de mais pedante e “artístico” (no mau sentido) na cultura francesa. Foi assistente de câmera, crítico, diretor de filmes publicitários e assistente de Clair e Feyder. Do seu apogeu – 1937-46 – diz Sadoul: “um mestre: exigente, cuidadoso, convencido, frequentemente, grande”. O filme Boulevard do Crime, feito por Carné, foi votado pelos franceses (profissionais do Cinema) como o melhor filme do século (Troféu César). Uma distinção discutível, mas que ajuda a reavaliar um cineasta que foi adorado em seu apogeu, em particular pela crítica brasileira. Talvez mesmo por ter continuado a trabalhar em circunstâncias difíceis sob o domínio da Ocupação nazista da França, sem nunca fazer concessões (aliás, este é traço em comum entre os melhores cineastas: a coerência, a dignidade de levar uma profissão das mais ingratas sempre com honestidade artística). A verdade parece estar num meio termo. Quando apoiado pelo que havia de melhor na indústria francesa do momento, escritores poetas como Jacques Prevért, diretores de arte como Alexander Trauner e atores como Michéle Morgan e Jean Gabin, Carné podia ser realmente brilhante. Sozinho, suas limitações ficavam mais aparentes. Mas ninguém como ele conseguiu refletir no chamado “realismo poético” dos anos trinta, o clima de fatalismo, miséria, paixão, tragédia, que prenunciou o espírito francês que de maneira clara (mas só visível posteriormente) prenunciou a derrota daquele país diante das forças nazistas. Carné não foi culpado pelo fracasso francês na guerra, nem na falta de resistência do francês médio ao invasor e ocupante. Mas ele, como ninguém soube transformar essa impressão terrível em Arte.

FILMOGRAFIA:

1929 – Nogent, Eldorado du Dimanche. 1936 – Jenny (Idem. Françoise Rosay, Albert Préjean). 1937 – Família Exótica. (Drôle de Drame. Michel Simon, Françoise Rosay). 1938 – Cais das Sombras (Quai des Brumes. Jean Gabin, Michèle Morgan). Hotel do Norte (Hotel du Nord. Annabella, Jean- Pierre Aumont). 1939 – Trágico Amanhecer (Le Jour se Lève. Jean Gabin, Arletty). 1942 – Os Visitantes da Noite (Les Visiteurs du Soir. Arletty, Marie Déa). 1945 – O Boulevard do Crime (Les Enfants du Paradis. Arletty, Jean- Louis Barrault). 1946 – As Portas da Noite (Les Portes de la Nuit. Pierre Brasseur, Yves Montand). 1950 – Paixão Abrasadora (La Marie du Port. Jean Gabin, Nicole Courcel). 1951 – Juliette ou La Clef des Songes (Gérard Phillipe, Suzanne Cloutier). 1953 – Teresa Raquin (Thérèse Raquin. Simone Signoret, Raf Vallone). 1954 – L´Air de Paris (Jean Gabin, Arletty). 1956 – Ele, Ela e o Outro (Le Pays d´Où Je Viens. Gilbert Bécaud, Françoise Arnou). 1958 – Os Trapaceiros (Les Tricheurs. Pascale Petit, Jacques Charrier). 1960 – Terrain Vague (Danièle Gaubert, Roland Lesaffre). 1963 – Du Mouron pour les Petits Oiseaux (Paul Meurisse, Dany Saval). 1965 – Três Quartos em Manhattan (Trois Chambres à Manhattan (Annie Girardot, Maurice Ronet). 1968 – Les Jeunes Loups (Haydée Politoff, Christian Hay). 1970 – As Testemunhas do Medo (Le Assassins de l´Ordre. Jacques Brel, Catherine Rouvel). 1973 – La Merveilleuse Visite (Gilles Kohler, Deborah Berger). 1977 – La Bible. (Doc. TV). 1980 – The Immortal Heritage (TV). 1993 – Mouche.

 

Trágico Amanhecer

Cultuado pela crítica, inclusive brasileira, o francês Carné (1909-96) se consagrou como mestre do realismo poético no final dos anos 30, cujo fatalismo e tragédia muitos viram como uma premonição da supremacia nazista sobre a França e que teve seu auge com sua obra-prima, O Boulevard do Crime (Les Enfants du Paradis, 1945). Mas uma visão global de sua carreira mostra que acertava mesmo quando estava bem acompanhado, como nesse melodrama policial escrito por Jacques Viot e o grande poeta Jacques Prevert, com música de Maurice Jaubert e estrelado pelo grande astro Jean Gabin (1904-76). Ele faz um operário solitário e meio ingênuo que se envolve com uma moça inocente (Jacqueline Laurent), um artista de vaudeville (Jules Berry) e sua vivida assistente (Arletty, depois estrela de Boulevard e que cumpriria pena após a Libertação por ter tido um amante nazista). Aos poucos descobre uma ligação entre os três, com o ciúme e a sordidez levando-o a uma tragédia. Melancólico e mais franco que os filmes noir americanos, poético e criativamente narrado por Carné e ainda com o sempre carismático e competente Gabin, o filme envelheceu bem. Refeito pelos americanos, em 47, dirigido por Anatole Litvak, como Noite Eterna (The Long Night) com Henry Fonda e Bárbara Bel Geddes.

Portas da Noite

Ainda um dos mais famosos filmes do famoso diretor Carné, num projeto diferente que foi planejado originalmente já que os papeis de Jean Diego e Malou eram originalmente para ser interpretados pelo então amantes Jean Gabin e Marlene Dietrich, que tinha vindo para a França após o fim da Guerra. Mas ela desistiu do projeto e Gabin a seguiu. Carné e Prévert tiveram que escolher e um novato foi promovido por sua amante, a cantora Edith Piaf (e assim começou a carreira famosa do cantor Yves Montand). Talvez por isso tenha sido considerado o último clássico de Carné. A história sucede em Paris, numa única noite, quase surrealista, logo depois do fim da Guerra, a Liberação, numa noite de inverno e Jean Diego reencontra seus amigos da Resistência. Enquanto estão comemorando num bar, surge um homem estranho que finge ser o Destino e que lhe prevê encontrar a mulher mais bela do mundo. Feito no estilo realismo poético, com música do famoso Joseph Kosma que se tornara célebre com o clássico As Folhas Mortas (Les Feuilles Mortes). Um clássico que relembra uma época, hoje um pouco antiquada.

Thérèse Raquin

Já houve várias versões desta adaptação de famosa obra do escritor Zola. Notável mais pela reunião de dois astros famosos, Simone Signoret e o italiano Raf Vallone (que recusou ser dublado e preferiu ter um certo sotaque italiano). Na cidade de Lyon, do após guerra, fala sobre Simone uma mulher reprimida que está presa a um casamento infeliz com um primo e ainda tem que aceitar sua mãe dominadora. Um dia entra na vida dela Laurent (Vallone), com quem começa um romance. Mas são vítimas de chantagem. Ganhou o prêmio Leão de Prata em Veneza. Na verdade, ainda resiste ao tempo graças a Signoret (antes de se tornar uma matrona de papeis trágicos) e um dos últimos momentos de Carné, conseguindo manter um clima trágico e trágico.

Três Quartos em Manhattan

Este filme nunca passou no Brasil em salas comerciais e só mais tarde é que se tornou curioso o fato de que ele traz a estreia no cinema numa ponta do hoje célebre Robert De Niro (numa ponta como cliente no Diner). Já começou a decadência de Carné (1906-96), rejeitado pela Nouvelle Vague, que realizou alguns dos grandes filmes clássicos do cinema francês. Ele trabalhou com figuras famosas da técnica, como o escritor Jacques Prevert, o cenógrafo Alexandre Trauner, o músico Maurice Jaubert, e o astro Jean Gabin. Depois deste fez somente outros quatro filmes, um até religioso documentário sobre a Bíblia. Trata-se de uma trama policial filmada nos EUA coisa rara, onde o herói é um certo François Combe, que se muda para Nova York, quando a esposa o abandonou e vai trabalhar para a televisão. Uma noite conhece uma jovem atraente Kay Larsi num bar (Girardot, 1931-2011, morrendo de Alzenheimer). Annie por este filme ganhou em Veneza prêmio de revelação e melhor atriz (unânime). Hoje este filme é considerado apenas uma raridade mal sucedida, e muito raro. Mas vale a pena descobrir essa raridade.