Nunca assisti a peça original que Larry Kramer tentou durante anos transpor para o cinema como o mais sério e imparcial registro já realizado sobre a tragédia do chamado Câncer Gay, uma doença que a partir de 1981 se espalhou entre a comunidade gay de Nova York e que o governo norte-americano recusou reconhecer ou tomar providências a respeito. E a própria comunidade gay custou a se organizar e se assumir. É o que eventualmente seria batizada de HIV/Aids. De qualquer forma, já é um testemunho da condição do atual cinema mundial e da auto-censura, quando a televisão, no caso a HBO, é a melhor produtora de telefilmes e séries, que conseguiu realizá-la com toda a dignidade e sem fazer qualquer concessão. E estamos diante de um fato que precisa ser reconhecido: as séries de TV são hoje melhores (ao menos em média) do que os filmes que passam nos cinemas.
De qualquer forma, The Normal Heart não é um filme fácil. Já houve outros igualmente meritórios (da própria HBO, E a vida Continua/And the Band Played On, 93 e Meu Querido Companheiro/Long Time Companion, 89). Ambos tem bastante semelhança com este filme, a diferença esta no texto autobiográfico de Kramer, feito com precisão cirúrgica. E realmente fica muito difícil não se emocionar o filme inteiro com alguns momentos que ressoam oportunos e ate chocantes. É difícil não pensar nos amigos e colegas que perdemos também aqui no Brasil. O protagonista é Mark Ruffalo (como Ned Weeks), um judeu com dinheiro que tem que cuidar do companheiro jornalista (Matt Bomer, de White Collar, especialmente convincente) que esta morrendo da doença, até o final do filme misteriosa. E Ned limpa sua sujeira, dá banho de chuveiro nele e aguarda a morte, impotente, quando estar com alguém era a única coisa que sonhou na vida. Jim Parsons, de Big Bang Theory, como Tommy, é que no enterro do companheiro chega à conclusão de que “Eles não gostam mesmo da gente” .
Cada um dos personagens é muito bem construído. Ruffalo talvez seja o único dos protagonistas a demonstrar em gestos sua identidade sexual. Claro que sem a exuberância dos personagens de telenovela brasileira. Mas é justamente isso que torna tão forte quando ele é o primeiro a tentar organizar (mesmo com relutância) a comunidade e procurar encontrar alguma solução para a crise. Tenta fazer alguma coisa, quebrar a barreira de silêncio. Mas os próprios companheiros, cegos e surdos, daquele tipo que não quer ver, se voltam contra ele. O rejeitam e o derrubam do cargo na organização. Este me parece o maior mérito do filme. Claro que o maior culpado aparece nos letreiros finais: o presidente Ronald Reagan que fechou os olhos para tudo e se negou ferrenhamente a dar fundos para a Pesquisa. Mas a comunidade também teve sua culpa, antes de tudo por não ter coragem de se negar a promiscuidade, de assumir publicamente sua luta e nisso incluindo os que viviam no armário e não tiveram coragem de ajudar os companheiros que estavam morrendo estupidamente.
Isso para mim é a coragem maior de um filme que não se furta de ter algumas cenas mais explícitas na parte inicial (para ilustrar a festa, no caso em Fire Island) preparando o caminho para a descida no inferno. Co-produzido por Brad Pitt, Ruffalo e o diretor Ryan Murphy (da série Glee e Comer, Rezar, Amar), sendo que foi esse filme que possibilitou o encontro com Julia Roberts, que tem seu momento mais intenso e dramático talvez em toda sua carreira em algumas poucas cenas, como Dra. Emma, que parece a única sensata lutando contra uma burocracia implacável. Julia tem dois grandes momentos: a explosão de fúria, com o burocrata e o pequeno momento de ternura com Ned (porque ela foi vitima de pólio e anda em cadeira de rodas).
Não era um filme fácil de escalar elenco e o resultado me pareceu perfeito. Até mesmo com atores que tem fracassado sucessivamente como Taylor Kitsch, que faz esquecer as bobagens de John Carter de Marte, e está perfeitamente aloirado e vaidoso, como Bruce Niles, fraco demais para se assumir. E foge do final feliz. Conclui mesmo antes de acontecer Rock Hudson, Elizabeth Taylor e a midiatização da doença. Que hoje já parece tão distante que já acontece a estupidez de esquecê-la e ignorar sua existência. As indicações aos Emmys acontecem agora dia 10 deste mês. The Normal Heart deve ser o provável vencedor.