Crítica sobre o filme "Cães Errantes":

Rubens Ewald Filho
Cães Errantes Por Rubens Ewald Filho
| Data: 31/10/2013

 O novo cinema taiwanês, movimento que se originou em meados da década de 80-90, é caracterizado por seus diretores transgressores, que procuravam subverter todas as possíveis convenções estéticas e dramatúrgicas do cinema americano. Diretores como o já falecido Edward Yang (Yi Yi, Os Terroristas), Hou Hsiao-Hsien (Cidade das Tristezas, The Puppetmaster) foram longe nessa intenção, mas nenhum transgrediu tanto quanto Tsai Ming Liang, o caçula do grupo, que se afirmou como uma potente voz no cinema taiwanês em 1994 com seu magnífico Vive L’Amour, filme que venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza daquele ano. Hoje, quase 20 anos depois, Liang segue quebrando regras e entrega, talvez, seu filme mais desafiador, Cães Errantes, premiado com o grande prêmio do Júri no Festival de Veneza desse ano.

Ao retratar o cotidiano de uma família miserável em Taipei, Liang usa a estética ultra-minimalista que marcou sua carreira - planos fixos extremamente longos em que cada gesto dos personagens ou do cenário tem importância fundamental, pouquíssimo diálogo, personagens sozinhos sob o pano de fundo de uma cidade decadente, edifícios antigos escuros e abandonados e uma sempre presente aura de extrema melancolia. Cães Errantes é ao mesmo tempo clássico Tsai Ming Liang, mas também é completamente diferente de tudo que ele já fez. Se em filmes como O Buraco (Que mistura sua estética clássica com sequências musicais inusitadas, que marcam os “episódios do filme), Vive L’Amour e Não Quero Dormir Sozinho, Liang ainda se utilizava de uma estrutura narrativa clássica, dividida em três atos, começo, meio e fim, em Cães Errantes essa estrutura é completamente ignorada em função da tentativa de construir um filme que não é um filme, mas uma instalação, pura poesia. Podemos entender algumas coisas do enredo - O pai das crianças é um homem problemático, que não consegue se manter em qualquer emprego e gasta o dinheiro que ganha com cigarros e bebidas (tanto que o filho tem que guardar o dinheiro em suas coisas), há uma mulher que aparentemente é a mãe das crianças ou quer ser e ajuda a família ao longo do filme e mora em um prédio abandonado e dá comida aos cachorros que por ali transitam, há o desejo das crianças por ter uma mãe (elas criam uma “mulher repolho” e a colocam para dormir ao lado do pai), mas o que prevalece, além do enredo, são as sensações, a atmosfera de pura melancolia.

Quando digo que é um filme desafiador, não é hipérbole, Tsai Ming Liang não é conhecido por realizar filmes de fácil digestão e esse é talvez seu filme mais indigesto. Só os espectadores pacientes serão recompensados. Há momentos em que planos fixos estendem-se por até 10-13 minutos e pouca coisa acontece, aparentemente - O pai, trabalhando segurando uma placa que faz propaganda de imóveis, canta uma canção triste sobre a antiga China, o plano enquadra seu rosto e permanece imóvel por volta de cinco minutos, a intensidade dessa sequência é quase intolerável, através da música, da sonoplastia (o barulho ensurdecedor do vento e dos carros em movimento) e do belo trabalho do ator, podemos sentir na pele toda a dor que esse homem sente, a perdição e a falta de rumo. Há vários desses momentos, os quais não vou mencionar para não estragar a experiência dos que vão assistir a esse filme único.

Talvez esse não seja o melhor filme para fazer alguém se interessar pelo trabalho de Tsai Ming Liang, mas aqueles que tem interesse de descobrir novas formas e um cinema completamente único e inigualável, dêem uma chance à Tsai Ming Liang.