Crítica sobre o filme "Corpo que Cai, Um":

Rubens Ewald Filho
Corpo que Cai, Um Por Rubens Ewald Filho
| Data: 21/12/2012

Embora tivesse sido recebido com restrições em sua estreia, foi indicado apenas ao Oscar de direção de arte e som e esqueceram absurdamente a trilha musical, embora tenham premiado em 2012 a de O Artista eu usava parte importante desta trilha dizendo que era homenagem e citação!). Mas acabou virando o favorito da crítica dentro da obra do diretor (em parte porque durante 20 anos Hitchcock não permitiu que ele fosse reapresentado). E estranhamente foi escolhido pelos críticos de todo o mundo reunidos pela revista inglesa Sight & Sound, também em 2012 como o melhor filme de todos os tempos superando o anterior Cidadão Kane!

Eu o assisti ainda criança e desde logo adorei o resultado também em parte porque era encantado por Kim Novak, paixão esta que nunca passou mesmo agora quando ela é octogenária ainda a acho linda e misteriosa (só recentemente ela passou a confessar que o filme é seu preferido e Hitchcock também virou seu diretor preferido, porque o personagem que fez tem dentro de si muitas facetas, assim como ela própria que se assumiu bipolar!).

Não foi, porém, o que me disse quando conversei com ela em Berlim (num momento inesquecível) quando preferia o ex-namorado Richard Quine e rejeitava George Sidney. De qualquer forma, naquele momento Kim era a maior estrela de Hollywood e infelizmente não fez outro filme da mesma qualidade, se afastando cedo demais (em parte porque precisava de um diretor forte como Hitch para conduzi-la, em parte porque acabou o sistema de estúdios e não se deu bem como freelancer).

Enfim, depois daquela exibição original do filme Um Corpo que Cai nunca mais passou no Brasil e acabou virando um mito e me lembro muito bem que o Silvio de Abreu, via Carlos Manga conseguiu dos Estados Unidos uma cópia de colecionador em formato Scope (não havia na época os conceitos de widescreen ou de pirata).

Que a gente via com admiração diante das ousadias estilísticas e narrativas do diretor, que fugia completamente do normal, inclusive na ausência de um final feliz (até hoje o considero um pouco abrupto e até confuso). Quando criança não acreditava que pudesse terminar daquela maneira.

Na estreia assustou os críticos americanos (sempre tontos e prontos a fazerem besteira, tendo custado 2 milhões 479 mil dólares e rendido bruto US$ 5 milhões e 300 mil) que reclamaram que James Stewart era velho demais para o papel e tinha o dobro da idade de Kim, uma besteira que hoje não incomoda (mesmo porque ela não parece jovem demais, tem idade indefinida já que todo o filme tem uma estrutura onírica). Também me lembro que Stewart esteve no Rio para apresentar a reprise dos filmes que Hitchcock havia escondido e participei da entrevista com ele (naturalmente muito simpático e afável como todos, já o conhecia também de Cannes e Música e Lágrimas).

Hitchock tinha um contrato com a Paramount que fazia com que os direitos de seus filmes para o estúdio revertessem para ele depois de certo tempo e assim ele os negociou com a Universal (porque ele era também um grande acionista dela e foi onde ficou trabalhando em seus últimos anos).

Dessa forma, os direitos foram para sua única filha Patricia (Pat) Hitchcock (1928- ainda viva) com quem também tive uma informativa entrevista (ela participou como atriz, alias boa, em papeis quase humorísticos, de vários trabalhos do pai). Foi assim que voltamos a ter acesso a este filme junto com os outros raros (O Terceiro Tiro, Janela Indiscreta, O Homem que Sabia Demais, Festim Diabólico, que era da MGM).

Vertigo (Vertigem, literalmente) foi também um dos filmes mais imitados e homenageados de todos os tempos principalmente na obra do hoje decadente Brian De Palma que o recriou várias vezes (em Vestida para Matar, Estranha Obsessão, Doublê de Corpo).

O papel central foi planejado para a descoberta de Hitch, Vera Miles (com quem este fez O Homem Errado e mais tarde Psicose). Ela chegou a fazer os testes de guarda-roupa ,pousou para o quadro que aparece na história mas a filmagem foi atrasada (inclusive porque Hitch foi operado) quando chegou a hora, ela anunciou que estava grávida e não podia fazer o filme. Este nunca a perdoou por ter perdido sua chance (Vera era casada na época com Gordon Scott, o halterofilista e Tarzan). A atriz ainda viva há muitos anos não se deixa fotografar.

Foi assim que Kim Novak estrela maior da Columbia e que realmente queria ser uma atriz de verdade, mas Hitch não gostava de conversas. Como todo mundo sabe, ele preparava antes tudo minuciosamente e nunca olhava pela câmera, porque já sabia tudo o que havia previsto, as filmagens inclusive o entediavam. E nunca se enganava, já que tinha permanecido meses fazendo os story-boards e cuidando dos detalhes.

Quando Kim pedia explicações ou a motivação para tal cena, ele dizia “é apenas um filme, interprete” (estava na moda na época ele comparar os atores como gado). Enfim, nunca gostou de Kim e nunca a ajudou. Ele já tinha feito antes vários trabalhos com James Stewart – na verdade, o quarto - mas este foi o último, talvez porque tivesse ouvido os críticos que o acharam velho (se foi isso, burrice dele). Correm lendas sobre a crueldade que ele teria tratado a atriz obrigando-a pular várias vezes na água do estúdio, que passava pela Baia de São Francisco.

Mas isto não se fala aqui nesta edição. As locações foram em duas missões famosas na região da Califórnia, Mission Dolores e San Juan Bautista (sendo que não existia a torre que foi construída em estúdio para as cenas importantes que foram feitas lá, em parte inclusive em maquete/miniatura). A ponta do diretor é aos 11 minutos, muito rápida, passando rapidamente carregando a caixa de um instrumento por uma loja onde Jimmy entra, bem no começo da trama.

Um Corpo que Cai não é propriamente um suspense no sentido tradicional da palavra. A irônica que este omais celebrado de Hitchcock, o mestre do suspense, é uma história de obsessão, amor, traição e falsa identidade.A trama policial e mesmo a espiritualista são meras pistas falsas, para tornarem mais intrigantes as reviravoltas de um amor proibido. O clima inusitado já começa com os letreiros de apresentação do mestre Saul Bass, que procuram mergulhar o espectador num turbilhão de vertigens, já que o protagonista nunca está em controle da situação.

Embora seja um policial honesto, fica intrigado quando acredita que a mulher que está espionando poderia estar possuída pelo espírito de uma outra, uma certa Carlota, cujo retrato está num museu e que teria ficado louca. Comete o erro de se apaixonar por essa mulher e quando esta morre, aparentemente por sua culpa, se jogando de um Torre ( ele é incapaz de mesmo subir os degraus para ir salvá-la), isso só acentua a gravidade de sua neurose e culpa.

Ao mesmo tempo, o faz desconfiar de que há algo errado, quando encontra uma garota muito parecida com a falecida. Só que com outro jeito, cabelos e roupas diferentes. E não resiste a tentação de aos poucos transformá-la na outra. Mesmo que as consequências sejam trágicas, com o risco de perdê-la novamente. Embora haja elementos de “thriller” e mesmo policial, o que realmente importa é a história de amor e justamente deve ser por causa disso que o filme manteve seu impacto. É um filme de sonho, de obsessão, de fantasia (várias cenas foram rodadas com um pano na frente da lente para lhe dar a impressão de que foram feitos com a nevoa de São Francisco).

Na verdade, em todos os filmes de Hitch existem menos experiências técnicas por vezes atrevidíssimas. Elas persistem aqui, mas com outra intenção, a de acentuar o clima de amor arrebatador (a sensação de vertigem presente no começo e depois em todo o filme e principalmente o beijo do casal à beira do mar explodindo nas rochas). Tudo conduzido de forma brilhante através da trilha musical de Bernard Hermann, que praticamente fornece o tom e o ritmo da narrativa.

O filme tem alguns problemas não solucionados (a maquiagem de Kim, em particular as sobrancelhas que ficaram pesadas demais, a cena final que é precipitada demais, faltaram alguns planos ali que deixassem mais patentes a ação e reação que provoca o desfecho).

Mas o filme é tão absorvente e atormentado como um pesadelo, que numa revisão em Blu-ray (naturalmente de boa qualidade já que foi feita a partir da restauração original que levou dois anos e rodado com película usada no Vistavision) que emoldura a beleza inacreditável de Kim (mesmo um pouco gordinha para os padrões atuais, seria por essa razão que Hitch dizia que a mulher dela Alma não gostava do filme, o que é desmentido aqui) e a empatia de Jimmy Stewart. Importante: praticamente todos os interiores foram recriados em estúdios e houve apenas 16 dias de filmagem em locação.

Foi inspirado no livro francês, D’Entre les Morts (Among The Dead/Dentre os Mortos foi o título de rodagem, de Pierre Boileau e Thomas Narcejac, os mesmos autores de As Diabólicas. Reza a lenda que eles teriam escrito especialmente para Hitch que havia tentado comprar os direitos daquele outro clássico e não conseguido. O roteiro passou por três mãos, primeiro o poeta Maxwell Anderson (segundo o coprodutor Herbert Coleman não fazia sentido, depois Alex Coppel (só está creditado por causa de contrato) e finalmente do dramaturgo Samuel Taylor, conhecido como autor de Sabrina (mas também de Papai Playboy, O Amor, Eterno Amor, Avanti, Promessa ao Amanhecer, Topázio, Mais uma vez Adeus, Três em um Sofá e Melodia Imortal. Não se pode esquecer que Hitch participava de todo roteiro que filmava sem crédito, assim como sua mulher Alma Revill que raramente também era creditada, mas era a pessoa que ele ouvia e respeitava. Era quase uma co-autora de tudo que ele fez.

Trívias notáveis: o cameramen sem crédito no filme, Irmin Roberts inventou o famoso "zoom out e track in" shot (também chamado de "contra-zoom" ou "trombone shot") para dar impressão de vertigem na plateia. Ainda hoje em San Francisco você pode contratar tours que o levam nas principais locações do filme como o The Empire Hotel que é agora o Hotel Vertigo (em 940 Sutter St. No coração de San Francisco).

O quarto Room 501, ainda se parece com o filme. O exterior do apto está localizado em 1000 Mason St., diante do Fairmont Hotel. Foi o artista John Ferren que planejou a sequência de Pesadelo e também pintou o Retrato de Carlotta. Nas pesquisas do American Film Institute o filme se saiu bem ficou em primeiro lugar dentre os filmes de mistério e suspense, seu pôster foi em terceiro (dentre os melhores pôsteres de todos os tempos) e ficou em nono lugar dentre todos os filmes.

Não é verdade o boato que Kim Novak teria dublado a voz da freira no final. Hithcock mudou a ação do livro de Paris para San Francisco e também a conclusão, já que o herói do livro estrangulava a misteriosa mulher.

Será que Um Corpo que Cai merece seu título de melhor filme de todos os tempos? Acho irônico porque no fundo é um prêmio para esse diretor digamos comercial, que procurou a publicidade e a fama justamente para poder continuar fazendo seus experimentos.

Um dos poucos cujo nome e função era conhecida do público. Eu gosto pessoalmente mais dele do que de Cidadão Kane, mas não acho que tenham a mesma importância histórica ou na linguagem do cinema.