Crítica sobre o filme "Vendedor de Ilusões, O":

Rubens Ewald Filho
Vendedor de Ilusões, O Por Rubens Ewald Filho
| Data: 15/08/2012

Era muito raro na época que Hollywood fizesse versões de shows da Broadway conservando praticamente a mesma estrutura e praticamente todas as canções. Mas como chamaram o diretor original da peça Morton DaCosta (1914-1989), que também era produtor, utilizaram grande parte do elenco do palco (como Pert Kelton, que faz a mãe da heroína, o grupo Buffalo Bills) assim como as canções (somente foram cortadas My White Knight, que foi substituída por Being in Love, que ainda assim usava parte da letra da anterior e It´s You, que o quarteto chamado Bufffalo Bill, que cantam no estilo Barbershop e que abria o segundo ato.

O curioso é que Music Man foi refeito para a televisão na sua integra em 2003, com Matthew Broderick e Kristin Chenoweth, direção de Jeff Bleckner. E nessa versão inédita no Brasil, as canções foram restauradas. Um detalhe: DaCosta, que era de origem russa e considerado pelo elenco uma pessoa gentil e criativa, fez apenas dois outros filmes, sendo que o anterior também é famoso, A Mulher do Século (Auntie Mame, 58, com Rosalind Russell, que também dirigiu no palco).

Ele nunca nega essa origem teatral e usa nos dois filmes um recurso hoje fora do moda, quase um íris do cinema mudo (focando com um pequeno círculo o rosto do personagem, ele ia mais adiante e desliga toda a luz em volta desse personagem, deixando um único foco nesse protagonista, o que é sem dúvida um efeito muito usado no teatro).

Então esta é uma versão fiel da peça da Broadway que deu um Tony (o Oscar da Broadway) para o veterano ator Robert Preston (1918-87, veterano coadjuvante de Hollywood, ou co-astro, ele revelou uma energia inesperada no personagem) e dali em diante se manteve em papéis importantes até sua morte (o mais famoso e que lhe rendeu indicação ao Oscar foi o gay amigo de Julie Andrews, de Vitor Vitória, em 1982).

Ele não canta no sentido verdadeiro da palavra, mas diz as melodias, no estilo Rex Harrison, de My Fair Lady (a diferença é que Rex no filme gravou tudo na hora da filmagem enquanto Preston pré-gravou tudo e sincronizou na hora da rodagem). Ele, porém, é o problema maior do filme.

Não se nega sua energia e uma maneira muito peculiar de falar, que tornou muito difícil para outros atores o substituíram (Matthew Broderick não conseguiu fazer o personagem funcionar, eu vi na Broadway em 2000 numa boa montagem, com Rebecca Luke e Craig Bierko- um ator que nunca deu certo- mas que se defendeu bem. Deve ter acertado também Dick Van Dyke que também tem suas marcas registradas).

A Warner não queria Preston no filme exigindo Cary Grant (que recusou) e Frank Sinatra. Mas foi imposto pelo diretor que disse que não faria o filme sem ele. Agora na cópia Blu Ray (claro que de boa qualidade) ressaltam-se mais seus defeitos. Que são basicamente o excesso de maquiagem (ele já tinha certa idade, ou seja, era velho demais para o personagem e o make up só atrapalha. Também o fato de terem oxigenado seu cabelo que ficou muito esquisito. Também não sinto e nunca senti nele uma virilidade que convencesse no personagem.

Para o espectador que não é fã de musical eu não aconselho o filme porque será uma overdose de música e canções a moda antiga. Acontece que essa a proposta justamente do compositor Meredith Wilson (1902-1984), que era um veterano do cinema (imagem que ele compôs música e fez arranjos para O Grande Ditador, 40, de Chaplin e Pérfida, 41, com Bette Davis.E até o venerável Sem Novidade no front, de 1930).

Na Broadway porém ele só fez de sucesso The Unsinkable Molly Brown (filmado em 64 como A Incrivel Molly, com Debbie Reynolds) . Mas compôs muitos Standards como It´s Beginning to Look Like Chrismas e duas do filme que tiveram êxito, por acaso ambas têm a mesma melodia, mas com andamentos diferentes, a marcha para banda marcial, Seventy –six Trombones e a romântica Good Night my Someone. Mas o maior êxito foi mesmo outra canção romântica chamada Till There was You (que foi interpretada pelos Beatles em começo de carreira e muita gente hoje em dia ainda acha que é deles).

Music Man é uma homenagem explicita do compositor a sua cidade natal Mason City, no centro oeste americano, Estado de Iowa, onde se passa a história e aconteceu a premiere em 1919, quando foi estudar na Julliard. Trabalhou especialmente no rádio e só conseguiu realizar o sonho de montar Music Man em 57, quando o show se tornou um grande sucesso ganhando cinco Tonys, inclusive melhor musical ficando em cartaz por 1,375 performances. O escândalo é que a peça ganhou justamente de West Side Story, que hoje é considerado uma obra-prima!

O LP da peça ganhou o primeiro Grammy nessa nova categoria (gravação de shows) e ficou em primeiro lugar um número espantoso 245 semanas. Por ser adequado para jovens, o show foi com frequência montado nos cursos secundários por toda a América. No elenco original, o papel central feminino, a bibliotecária Marian era feita por Barbara Cook, que hoje já com 80 anos, continua a fazer muito sucesso em shows e discos solo.

Além de ser excessivamente cantado e dialogado (mas na estreia no palco o autor cortou outras 20 canções), o show é muito americano, inclusive com várias referências de época e locais que a gente não entende direito E lida com um estilo de música que até para mim é fora de moda, o tipo de coisa que se cantava no interior americano em 1912, quando começa a história.

A coisa mais interessante é que se trata de um malandro, um típico caixeiro viajante que vende instrumentos para bandas escolares e não sabe tocar nenhum instrumento.

Na verdade, a história é contada entre colegas caixeiros que contam entre si a história deste lendário professor Harold Hill (e a canção é interpretada e entrecortada pelos movimentos do trem, feitos de boca). A cidade se chama River City e o principal problema será convencer a bibliotecaria Marian (feita por Shirley Jones). Acontece que o filme durou nove meses em rodagem e no meio da filmagem ela descobriu que estava grávida. Contou apenas para o diretor mas o segredo foi espalhado por todos. Ele disse que não se importasse porque era de época e dava para disfarçar, mas na única cena de beijo com Preston, já estava bem adiantado e o bebe deu um chute que atingiu o ator! (o filho se tornou o cantor famoso Patrick Cassidy).

Alias Shirley é quem apresenta o Making of de meia hora sobre o filme chamado Right Here in River City: The Making of Meredith Wilson’s Music Man (fora disso só tem o trailer do cinema). Ela esta viva ainda (nasceu em 1934) e vivia naquele momento o auge de sua carreira. Bonitinha e encantadora, ela foi descoberta pela dupla Rodgers e Hammerstein que lhe deu logo o papel central do musical Oklahoma (55) seguido por outro grande projeto, Carrossel (56) e mais outro musical, Primavera do Amor (April Love, com Pat Boone).

Antes deste filme ela tinha rodado Elmer Gantry/Entre Deus e o Pecado, de Richard Brooks, como uma prostituta que lhe valeu um Oscar de coadjuvante (típico para boa moça que muda de gênero, claro que não foi merecido).

Antes deste filme fez ainda o papel central de Pepe, com Cantinflas (60, onde também cantava), e o faroeste Terra Brava, de John Ford, 61). Sua carreira, porém, não floresceria muito depois e hoje ela é mais lembrada como a mãe da Familia Do Ré Mi (The Partridge Family) da TV, onde trabalhava o enteado David Cassidy.

Shirley conta que não sabia dançar, era muito desajeitada, mas que mesmo assim foi a coreografa Oona White (1922-2005) que aqui finalmente estreou no cinema. Seu trabalho é muito bom e cheio de novidades com alguns pontos altos como a dança no parque e na biblioteca, além da cômica Shipupi – o nome não tem significado mas serve de showcase para o humorista Buddy Hackett, por alguma razão muito famoso nos EUA (o final com banda militar teve a participação das Bandas das Universidades da California e da Southern California). Oona faria também no cinema Bye Bye Birdie, 63, Oliver! (68, 1776, 72 e Meu Amigo Dragão, 77).

Outra figura de destaque é o ator infantil ruivo (Shirley o elogia) Ron (Ronnie) Howard, que é justamente o que cresceu, virou astro na TV em The Andy Griffith Show, depois em Happy Days, no filme American Grafitti e hoje é irregular, mas premiado com o Oscar diretor de cinema.

Eu gosto especialmente de atrizes características que fazem megeras e solteironas, como aqui no caso a grande britânica Hermione Gingold (inesquecível em Gigi, ela faz aqui a mulher do prefeito da cidade) e Mary Wickes (que é a mulher magra e de nariz adunco do grupo artística da primeira dama).

Musicalmente o filme é agradável e notável quando usam o chamado contraponto, Isto é duas canções com melodias diferentes, como no caso de Lida Rose e Will I Ever Tell You, interpretadas primeiro sozinhas e depois harmonizadas para serem interpretadas em conjunto. Isso também sucede mais tarde com duas outras, Pick a Little e Good Night Ladies.

O filme ganhou o Oscar de Trilha musical (adaptação ou arranjos) para Ray Heindernoff, categoria que hoje não existe mais (era especial para filmes que tinham mais de seis canções em sua trilha) e foi indicado para quatro outros: filme, figurinos, direção de arte, montagem e som. Ganhou também o Globo de Ouro de musical (e mais cinco indicações).