Crítica sobre o filme "Rua Chamada Pecado, Uma":

Rubens Ewald Filho
Rua Chamada Pecado, Uma Por Rubens Ewald Filho
| Data: 15/07/2012

Este já foi o filme que eu mais desejava assistir, porque não tinha idade para vê-lo quando criança e nunca foi reprisado ou exibido na televisão. Então corri atrás dele e só o consegui assistir no fim dos anos 1980, muito tempo depois de já ter conversado longamente com Elia Kazan (1909-2003), num Fest Rio.

Não apenas para mim, mas para toda uma geração, era lendário seu trabalho na renovação do teatro americano com encenações lendárias, a descoberta de Montgomery Clift, Marlon Brando, James Dean, Carroll Baker, Warren Beatty.

É preciso ver este filme para entender o impacto que Marlon Brando teve no cinema moderno, como a linha de frente do chamado “Método” de interpretação do Actor´s Studio. Sua entrada em cena é uma explosão de carisma, virilidade e por que não dizer, sensualidade (o que é perfeitamente correto para despertar o desejo da falsamente recatada cunhada Blanche). Falando com a boca cheia, usando camiseta, brutalmente selvagem, ele foi o perfeito interprete para a figura máscula e pouco inteligente de Stanley Kowalski.

Na verdade, como teatro- filmado, a fita é exemplar, valorizado pelo claro-escuro, o excelente elenco, pela figura patética (no bom sentido) de Vivien (um choque para a plateia que ainda se lembrava dela das reprises de E o vento Levou) mas que tinha toda a fragilidade do personagem (“Eu sempre dependi da bondade de estranhos” é sua frase final, que depois Almodóvar aproveitou em Tudo sobre minha Mãe). Também a trilha musical - tão sensual para a época que teve ser reescrita - ficou antológica e ajuda a dar o clima e atmosfera para um texto poético e de grande força dramática. Desta versão até mesmo o autor Tennessee Williams gostou. Das adaptações para o cinema de peças clássicas da literatura americana, é sem dúvida a melhor e justifica o prestigio que o diretor Kazan tem como renovador do teatro e cinema.

Quem conheceu Brando (1924-2004) como o senhor balofo e caricato do fim de sua carreira vai ter um choque e entender porque ele foi uma lenda viva, extremamente imitado por toda uma geração (o que inclui Paul Newman e Steve McQueen além de Beatty). Outros fizeram o papel de Kowalski na Broadway (como Jack Palance e Anthony Quinn), mas nenhum conseguiu o tom certo.

 Uma mistura de cafajestice com inocência, de força com fragilidade quase feminina. Nunca antes no cinema tinha alguém falado com a boca cheia, aparecido com camiseta rasgada, estuprado uma cunhada (ainda mais sendo o protagonista!).

E um show de carisma, que nunca mais teríamos nesse quilate. Brando ainda teria outras grandes interpretações (Viva Zapata!, Sindicato dos Ladrões, ambas com Kazan) antes de cair na complacência e excesso.

Tennessee Willliams (1911-83) foi junto com Arthur Miller, o mais importante dramaturgo dessa fase de renovação do teatro americano. Já consagrado antes pelo poético e autobiográfico (alias sempre era assim), À Margem da Vida (The Glass Menagerie), ele escreveu esta peça super premiada que foi a consagração de Brando (que antes já tinha feito outros sucessos no palco como I Remember Mama, A Águia de Duas Cabeças com Tallulah Bankhead e até um filme Espíritos Indômitos (The Men, 50, de Fred Zinnemann, onde fez um paraplégico).

O papel de Stanley foi oferecido antes a John Garfield, muito popular na época, depois Burt Lancaster não pode aceitar e Kazan se lembrava de Brando que tinha dirigido antes na peça Truckline Café (onde estava também Karl Malden, que seria seu grande amigo pelo resto da vida.

Aliás Kazan credita parte do êxito do filme ao fato de que todo o elenco era muito amigo e familiar). Williams a princípio foi contra porque Brando era mais jovem do que o personagem mas quando o conheceu ficou fascinado e virou seu fã (Brando sempre se lamentou dizendo que nunca conseguiu captar o humor de Stanley). Williams depois escreveria outras famosas peças de sucesso igualmente filmadas e sempre com problemas de sucesso como Gata em Teto de Zinco Quente, O Anjo de Pedra, A Rosa Tatuada, De Repente no Último Verão, Doce Pássaro da Juventude (e baseado num romance dele, Em Roma, na Primavera, novamente com Vivien Leigh) e Vidas em Fuga (Orpheus Descending, que foi filmado com Brando).

Ele era homossexual, mas nunca permitiu que seu texto fosse encenado com um travesti como propusera (atualmente está em cartaz na Broadway uma montagem all black com bastante sucesso). Streetcar estreou na Broadway em 1947 e ficou em cartaz por 855 performances.

Curiosamente apenas Jessica foi indicada ao Tony, nenhum dos outros atores, nem Brando (levaria algum tempo para críticos e colegas absorverem a novidade de seu jeito de representar. Até mesmo seu corpo malhado e bombado era coisa muito rara na época).

 Quem fez o papel de Blanche DuBois na Broadway foi Jessica Tandy (1909-94), aquela mesma que ganharia o Oscar como a velha de Conduzindo Miss Daisy (89) e que na verdade iria se tornando mais bonita e ainda melhor atriz com a idade. Brando preferia a interpretação de Vivien Leigh no filme (ela tinha feito também o papel na Inglaterra sob a direção do então marido Laurence Olivier) porque achava que ela tinha problemas na vida real (tuberculose, era bipolar e dizem ninfomaníaca) que a ajudavam a entender mais Blanche.

A peça apesar do sucesso do palco (onde foi produzida pela ex-mulher de David Selznick, Irene) não foi disputada pelo cinema porque com certeza teria problemas com a censura. Nesta edição em formato de livro (alias muito bonita), que tem cópia restaurada de ótima qualidade em Blu Ray,há um extra especialmente sobre o tema. O Código de auto censura da Industria proibiu qualquer referência ao homossexualismo (na história Blanche relembra que o marido foi gay e o encontrou na cama com outro, no filme só pode se referir a ele como poético e o espectador tem que imaginar o resto). Esses cortes foram feitos porque a Legião da Decência, um órgão católico tinha condenado o filme e proibido ele para todos dessa fé.

Para negociar uma mudança para “com restrições”, remontaram parte da fita (Kazan estava fora filmando Zapata e apesar de brigar depois no fundo sempre achou que do jeito que foi filmado dava perfeitamente para entender tudo). Mas esta versão é a completa (quatro minutos a mais do que no cinema) com as cenas que foram encontradas no negativo (há mais detalhes do rosto de Stella Kim Hunter, quando esta desce a escada atendendo o chamado de Stanley). A sequência do estupro ficou intacta já que na hora H a camera corta para um espelho, que é quebrado de forma simbólica!

Filmada quase na íntegra e totalmente em estúdio, ganhou Oscars de melhor atriz (o segundo para Vivien Leigh), coadjuvantes (Karl Malden e Kim Hunter, está logo depois teria problemas quando a puseram na lista negra do McCarthismo e ficou tempos sem poder trabalhar ), tendo sido indicado como filme, roteiro, diretor, fotografia, trilha musical, ator e direção de arte. Os outros também eram veteranos da montagem original (num total de nove). Ela deu trabalho (e já estava muito envelhecida).

Tudo foi rodado em ordem cronológica. Estranhamente Marlon Brando não ganhou o Oscar por este filme, apenas dois anos depois por Sindicato de Ladrões (ele teria um total de oito indicações, uma delas como coadjuvante e ganharia duas vezes).

Naturalmente todo mundo sabe que ele recusou o segundo Oscar por O Poderoso Chefão, alegando maus tratos aos nativos americanos). Corre a lenda de que o papel de Blanche foi antes oferecido a Olivia de Havilland, que teria exigido um salário alto demais. Houve refilmagens da peça para a teve em 1984 com Ann-Margret e Treat Williams e em 1995 com Jessica Lange e Alec Baldwin (que reproduziam uma versão teatral e Alec rouba a fita enquanto Jessica cai no overcating).

O título nacional deve ter se originado da montagem teatral que criou este título bonito, mas que só confunde, em vez de seguir o literal (ou seja Uma Rua Chamada Pecado, que já é moralista em vez de Um Bonde chamado Desejo).

Um detalhe curioso: Williams sempre se impressionou que os dois bons que existiam no French Quarter de New Orleans tinham os nomes de Desejo e Cemitérios, ou seja, Amor e Morte. Montado no Brasil, várias vezes com Henriette Morineau, Eva Wilma, Maria Fernanda (em 68, uma montagem da peça chegou a ser proibida pela censura da Ditadura), Leona Cavalli.

Eu gosto muito do filme que foi feito com muito clima, intensidade e com interpretações excelentes (não esqueçam que Vivien tinha na época apenas 36 anos). Tem momentos inesquecíveis (Marlon gritando Stella na escadaria, ao som da trilha de jazz de Alex North, a antológica frase final de Blanche).

Ganhou também outros prêmios (no Festival de Veneza melhor atriz e prêmio especial do Júri, o Bafta de atriz Vivien, o Globo de Ouro de coadjuvante, Melhor filme, diretor e atriz pelos Críticos de Nova York). Mas Brando era uma força tão nova e ousada que se esqueceram dele na hora dos prêmios, o que é obviamente um absurdo.

Outras Trivias: Mickey Kuhn que faz o marinheiro que ajuda Vivien no bonde já tinha aparecido com Vivien como a criança filha de Melanie/Olivia! Sempre disse que ela foi muito gentil com ele. Nas pesquisas do American Film Institute, a frase "Stella, Hey Stella ficou" em #45 entre as frases mais famosas do cinema e o filme em #47 dentre os maiores filmes de todos os tempos. 

A outra frase: "Eu sempre dependi da bondade de estranhos" ficou em #75. Na época das filmagens já não haviam mais bondes substituídos por ônibus, mas a produção conseguiu um para as cenas iniciais. Rodado em 36 dias. Quando o filme teve uma preview, o diretor Elia Kazan levou sua ocasional namoradinha Marilyn Monroe, a quem ele apresentou depois para o futuro marido Arthur Miller.

Um detalhe da censura: ela exigiu que Stanley fosse punido e por isso ao final Stella afirma que nunca mais vai voltar para ele (mesmo assim a gente fica com dúvidas).