O cinema soviético nunca teve distribuição internacional eficiente em parte porque era estatal, ou seja, financiada pela próprio URSS, mais preocupada em ser propaganda do que com sua qualidade artística. Também era problemática a situação dos realizadores, que não tinham liberdade para criar e caso caíssem em desgraça com o governo ou iam para o exílio ou simplesmente eram impedidos de trabalhar.
É o caso neste filme da maior estrela soviética Tatyana Samojlova (1934), ainda viva, uma mulher muito bela, que havia sido revelada na fita anterior do mesmo diretor Quando Voam as Cegonhas, que foi até hoje o único filme russo a ganhar a Palma de Ouro em Cannes!
No entanto, o premier soviético Kruschev disse que o papel dela era de prostituta e impediu a atriz de trabalhar fora do País. Durante anos ficou bloqueada voltando ainda em 1967 numa versão de Anna Karenina. Foi casada quatro vezes e já idosa voltou a aparecer em novelas de televisão. Mas nunca teve a carreira e experiência (vinha de família famosa de atores russos) que merecia.
Não foi diferente também como o diretor deste filme Mikhail Kalatozov. Tornei-me seu ardente admirador desde que descobri Yo Soy Cuba, seu último filme que é absolutamente genial. Foi por causa dele que corri atrás desta edição americana da Criterion, deste pouco lembrado filme (chegou a passar no Brasil, até porque concorreu em Cannes mas não ganhou!). Que também é excepcional e que os fãs de cinema precisam descobrir. Eis a biografia do diretor.
Kalatozov, Mikhail ( 1903- 1973)
Genial diretor russo, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes com Quando Voam as Cegonhas e só foi redescoberto recentemente com sua obra-prima Eu Sou Cuba (64). Obviamente ainda propaganda do regime recém-comunista que se instalou em Cuba – embora tenha participação no roteiro do famoso poeta Yuevtshenko, o filme é brilhante, todo realizado em grandes planos – sequências, com um mínimo de cortes, em geral usando lentes grande angular, numa espetacular fotografia em preto e branco, “um poema visual do comunismo kitsch, mostrando a opressão do povo cubano nos anos 60, com uma câmera acrobática, lembrando o virtuosismo estilístico de Orson Welles".
Uma sucessão de imagens memoráveis (só estreou nos EUA em 1995, mas no Brasil recebeu uma homenagem, um longa documentário chamado Yo soy Cuba- O Mamute Siberiano, de Vicente Ferraz). Kalatazov fez apenas uma fita ocidental medíocre (A Tenda Vermelha, foi a primeira co-produção entre União Soviética e Itália) e teve uma carreira difícil, sendo perseguido com frequência pelos governos.
Nascido em 28 de dezembro de 1903 em Tbilisi, Geórgia (antiga URSS) estudou economia antes de começar sua carreira no cinema como ator e fotógrafo. Dirigiu vários documentários, mas foi forçado a largar a profissão depois que seu filme Nail in the Boot, 31, foi banido pelos censores de Stalin. Mas retomou a atividade durante a Segunda Guerra quando também trabalhou como attaché na embaixada soviética nos Estados Unidos. Seu neto Mikheil Kalatozihvili (1959- ) também é diretor de cinema. Faleceu em 27 de março de 1972 em Moscou.
O que é a carta?
Não dá para separar o trabalho do diretor Kalatozov do seu diretor de fotografia Sergei Urusevsky 1908-74 com quem trabalhou em todos os filmes, inclusive Cuba, menos o último e mais fraco. Ele por si só merecia um estudo particular tal a importância de seu trabalho. Era bom explicar do que se trata o filme, que tem praticamente apenas quatro atores (uma mulher Tatyana) e uma participação pequena de uma jovem que aparece apenas porque a ela é endereçada a carta do título, o que justifica uma aparição no final).
São quatro membros de uma expedição arqueológica oficial do governo (uma única mulher Tanya é apaixonada por um deles, e desejada por outro Andrei -Vassilli) que vão para as montanhas da Sibéria procurando encontrar diamantes. A princípio nada dá certo e quando estão se desencorajando finalmente aparece a primeira pedra, o que significa a gloria nacional. Mas quando tudo dá a impressão de se acertar, eles acordam com um grande incêndio na floresta, que os deixa prisioneiros do fogo. Em vão procurando escapar nem que seja ao menos para entregarem a localização da mina. Tudo isso é narrado pelo chefe do grupo Sabinin (Innokenti Smoktunovsky, que se tornaria logo depois o mais famoso e importante ator da Rússia, conhecido até aqui por sua interpretação de Hamlet). É uma carta que nunca será enviada, mas em que ele relata os fatos e declara seu amor nunca realizada pela moça chamada Vera.
O que distingue o filme dos outros é a maneira com que ele foi feito. Deve ter sido um inferno as filmagens naquela região fria e desolada, um desafio que a fotografia vence com incríveis movimentos de câmera na mão, desviando de galhos e encostas, navegando por rios gelados, com enquadramentos exuberantes e muito russos (claro que a sombra de Einsenstein está presente). E já prevendo o desastre as imagens mesmo em tempos de paz já são sobrepostas pelas chamas do fogo (já prenunciando o desastre, mas também o conflito interno dos personagens já que o quarto elemento do grupo, Sergei - Urbansky - também deseja Tanya).
O resultado é de uma beleza indescritível que certamente depois influenciou A Infância de Ivan de Tarkovisky (62). Pode ser visto como uma história de amor, a luta pela sobrevivência do homem contra a natureza, poético, mas também realista, épico, mas também trágico. E sempre de uma beleza extraordinária.