Hitchcock deixara a Inglaterra contratado por Selznick que além de produzir filmes como E o Vento Levou, também vivia de descobrir talentos e fazer dinheiro emprestando-os para os estúdios. Seu celeiro era enorme e formado pelos melhores: sua esposa Jennifer Jones, Gregory Peck, Louis Jourdan, Ingrid Bergman (que descobriu na Suécia e lançou com uma imagem de saudável e ingênua), Rhonda Fleming, Joan Fontaine, Guy Madison, Joseph Cotten, Dorothy McGuire, Alida Valli, Shirley Temple (enquanto adolescente), Kim Hunter, Gene Kelly, dentre outros. E muitas vezes fez filmes apenas para dar trabalho a seu elenco.
Dos diretores, o mais bem-sucedido foi, sem dúvida, Alfred Hitchcock (1899-1980) que importou da Inglaterra e logo colocou num sucesso (Rebecca, a Mulher Inesquecível, 40, que lhe deu indicação ao Oscar). Ele se deu bem em Hollywood, mas sua carreira foi interrompida pela Segunda Guerra Mundial quando foi o primeiro a filmar os campos de concentração nazistas, um momento que o marcou para sempre. Naquela época os aliados não tinham ideia da existência deles nem do extermínio dos judeus.
Mesmo assim Selznick o manteve trabalhando em thrillers de espionagem (como Notorious/Interlúdio, que era passado no Rio de Janeiro) até Hitchcock iniciar sua carreira independente (ajudou também que Ingrid se tornou amiga e estrela favorita). O que nunca deixou de fazer foi de buscar novidades, inventar, arriscar com novas maneiras de contar uma história, como aqui no que é considerado o primeiro filme de Hollywood a utilizar na história a psicanálise freudiana (é praticamente uma lição simplificada e hoje até ingênua dos ensinamentos dele mas ainda bastante eficiente).
O importante é que foi um enorme sucesso de bilheteria (inclusive no Brasil, onde foi várias vezes reprisado) também por causa de sua trilha musical (de Miklos Rosza, de Ben Hur) que na época era inovadora ao usar o chamado “leit motiv”, ou seja, havia um tema aterrador por sinal, quando o herói está tendo uma crise e outra belíssima que era o tema de amor do casal (foi o primeiro a fazer isso dessa maneira, mas a estreia se atrasou de maneira que outro filme, Farrapo Humano /Lost Weekend de Billy Wilder estreou antes usando o mesmo recurso, no caso quando Ray Milland, que é alcoólatra, sente a tentação de voltar a beber! Naturalmente a trilha também era de Rosza que por sinal odiava trabalhar com Selznick).
Houve também outra novidade com o filme que foi uma ideia do produtor originalmente, a de chamar o mais famoso pintor/artista do movimento surrealista para desenhar e planejar as cenas de sonho do filme, o espanhol Salvador Dali (1904-89). Como todos sabem ele era parceiro de Luis Buñuel no lendário Um Chien Andalou (Um Cão Andaluz, 29) e contribuiu com ideias para L´Age Dor (A Idade do Ouro, de 30 do mesmo diretor), os dois momentos máximos do movimento.
E esteve antes em Hollywood ao criador uma sequência de delírio alcoólico com Jean Gabin, no seu primeiro filme americano (fugido da Guerra) que foi Moontide (Brumas, 43, de Archie Mayo). Aliás, nesta edição, há um bônus featurette sobre o tema Dali (Dreaming with Scissors: Hithccock, Surrealismo e Salvador Dali), de 2009, como todos eles por sinal. E que traz a sequência com Gabin (por sinal interessante).
Aqui originalmente foi concebida uma cena mais longa começando no Cassino (com a cortina com olhos!), depois com Peck fugindo pelo telhado, escapando por uma espécie de deserto, dançando com Ingrid e depois concluindo numa pirâmide. Tudo isso foi rodado pela segunda Unidade e não por Hitchcock. Selznick não gostou, achou que faltava imaginação e mandou refazer e reduzir tudo (e quem fez o trabalho final foi o diretor de arte William Cameron Menzies que é considerado o autor do visual de E o Vento Levou).
Foram eliminados alguns detalhes (como Ingrid virando estátua de pedra, que achou que era contra a imagem da estrela) e do filme na última edição foram cortadas cerca de 14 minutos. Dali cooperou com o projeto e nem cobrou a mais por isso. Toda a sequência tem a marca das obras do pintor (que aliás, resistem bem ao tempo) e hoje dá um toque especial ao filme (Dali naquela época também colaboraria com Disney fazendo um desenho animado curto, que só seria concluído em 2003 como Destino).
Quem for analisar como trama e enredo vai achar que envelheceu mal, o que é basicamente um drama psicológico de suspense ilustrando o complexo de Édipo e principalmente o complexo de culpa. Na história, Ingrid faz uma psiquiatra fria e mal-amada. Isso a gente percebe porque no maior estilo Hollywood ela sempre usa coque e óculos! Se apaixona por um médico recém-chegado. A sequência de entrada de Gregory Peck que entra em plano geral e chega até close, demonstrando que os dois se apaixonaram à primeira vista é outra demonstração do talento de Hitchcock.
Ele na verdade assumiu nome falso do diretor do sanatório e está sofrendo de amnésia, que eventualmente será explicada. A pista é um trenó, mas Hitch adorava lançar pistas falsas o que era chamado de McGuffin, por um complexo de culpa. O curioso é que naquele momento o produtor Selznick também sofria do mesmo mal porque havia morrido seu irmão mais velho, o brilhante Myron Selznick 1898-1944, que ele não conseguiu salvar do alcoolismo!
Outro detalhe: a própria psiquiatra de Selznick May E. Romm serviu de conselheira técnica para o filme. Ou seja, ao menos os autores do filme acreditavam piamente nos efeitos da psicanálise. O problema é que na época ela era ainda pouco conhecida (que o filme tem o cuidado de explicar até num letreiro inicial). Mas hoje isso pode parecer superficial, pueril e até risível. O que irá atrapalhar a história de amor, o romance entre o casal (nunca bem justificado, ainda mais quando ela começa a arriscar sua vida por causa desse amor mal justificado).
Com o passar do tempo Hitchcock passou a fazer seu cameo (pontinha) bem no começo do filme para não distrair o espectador que ficava na expectativa de sua aparição. Aqui ele faz sua ponta aos 40 minutos saindo do elevador de um hotel fumando. A Academia gostou do filme que ganhou o Oscar de Trilha Musical e foi indicado como Fotografia (George Barnes, o mesmo de Rebecca), Ator Coadjuvante (o russo Michael Checkov, que faz o mentor de Ingrid e que seria um dos principais professores do método de interpretação de Stanislawki), Direção, Efeitos Especiais e Filme. Ingrid foi Melhor Atriz pelos Críticos de Nova York (empatado com Os Sinos de Santa Maria).
Há duas sequências famosas, no primeiro beijo do casal, quando várias portas vão se abrindo lembrando um pouco Cidadão Kane, simbolizando a libertação da heroína e a cena com o revólver que atira diretamente para a câmera (esta cópia traz o flash em vermelho, colorido, com apenas dois frames, que era feito com tintura especial a mão em cada cópia e durante muito tempo esteve ausente). E outros momentos de muito clima (com a ênfase na navalha quando Peck vai se barbear, ameaça matar a indefesa Ingrid).
Rhonda Fleming foi revelada aqui e depois faria boa carreira (ela ainda está viva até hoje e especialmente bela para sua idade, nasceu em 1923!). Foi casada com um produtor muito rico e com ele conseguiu abrir hospital para mulheres com câncer e uma casa para ajudar homeless. Virou benfeitora.
Ela conta sua história e só esconde um detalhe: reparem que depois deste filme onde faz um ninfômana ela operou o nariz reduzindo seu tamanho. Ainda assim é uma das mulheres mais bonitas do cinema, uma sobrevivente, infelizmente esquecida.
Comenta-se também que o filme se tornou importante porque saiu justamente num momento em que muitos veteranos da Guerra voltavam traumatizados, perseguidos por pesadelos e a psicanálise podia ser uma forma de ajudá-los (mostra-se até trecho do filme de John Huston, Let There be Light, sobre esse veteranos e a cena de Patton, em que o general bate num soldado que sofre do que hoje é chamado de Post Traumatic (experiência traumática, resultada da Guerra). E também a chamada Culpa do Sobrevivente!
Tudo isso é sugerido por Hitchcock que utiliza não apenas uma fotografia expressionista em contrastes de claro e escuro (vê se muito a sombra das venezianas do estilo filme noir), mas também outros recursos. Ele tira às vezes os protagonistas um pouquinho fora de foco só para valorizar a profundidade de campo – ou seja, o que está no fundo – e com frequência adota o ponto de vista do personagem, a câmera subjetiva para acentuar a dramaticidade.
Chega ao cúmulo de repetir a cena do copo de leite de Suspeita mostrando a cena pelo ponto de vista da boca (parece piada, mas é verdade), no caso um truque visual que demonstra onde estamos tentando chegar: que Hitchcock era uma diretor que estava sempre experimentando, inventando e quase sempre acertando novas maneiras de contar a história. A mais famosa sem dúvida é a heroína que está na mira de um revólver e o que se mostra é uma mão enorme em primeiro plano e Ingrid no fundo. Para conseguir isso tiveram que usar uma mão falsa!
A citação no começo é de Shakespeare que parece ter tido opinião certa sobre tudo ao afirmar: “Nossas faltas não estão escritas nas estrelas, mas em nós mesmos”. O filme pode ter uma barriga no meio quando depois da exposição dos fatos fica brincando com a expectativa do espectador, que às vezes suspeita uma coisa, depois de outra. Até o finalzinho com uma gag (piadinha) como Hitchcock gostava.