Crítica sobre o filme "Manhattan":

Rubens Ewald Filho
Manhattan Por Rubens Ewald Filho
| Data: 28/02/2012

Ultimamente Allen tem declarado que este filme é superestimado e não o considera um de seus melhores trabalhos. Contam mesmo que ele chegou a oferecer fazer um filme de graça para a produtora United se eles concordassem em deixar o filme na prateleira (o que só prova que muitas vezes o autor não é o melhor juiz de sua obra).

Agora numa revisão (a primeira vez que eu vejo o filme inteiro, em geral porque revia apenas as cenas finais, a correria ao som de Gershwin, com um Allen ainda jovem e vital, com menos tiques e a cena da conversa com a Tracy) o filme continua lindo e tocante. Em particular na nitidez do Blu-ray pode-se saborear o esplendor da fotografia em preto e branco do mestre Gordon Willis (ganhou Oscar especial há pouco tempo da Academia), que antes era considerada escura demais. Este foi o primeiro filme – e certamente o melhor de Allen em preto e branco (suntuosamente fotografado por Willis, que se dá ao luxo de fazer uma cena no planetário onde vemos apenas os perfis do casal e outra num passeio no Central Park de charrete, onde só se percebe as lanternas do meio de transporte).

Manhattan foi indicado aos Oscars de roteiro original e coadjuvante (Tracy vivido pela jovem Mariel, neta do escritor Hemingway), ganhou os Baftas de filme e roteiro, César de filme estrangeiro, melhor diretor dos Críticos de Nova York. É uma declaração de amor à Nova York, em particular à ilha de Manhattan, para a qual ele escolheu como fundo musical apenas canções clássicas de Gershwin. É um fato raro que o filme começa sem qualquer letreiro (fora da distribuidora) e vai direto para as imagens da cidade até se ouvir inteira a Rhapsody in Blue, de George Gershwin (1898-1937). Todas as outras canções da trilha musical são também dele em geral em orquestra conduzida pelo maestro Zubhin Metha). As outras obras dele utilizadas no filme são : Love Is Sweeping the Country (1931), Land of the Gay Caballero (1930), Sweet and Low Down (1927), I´ve Got a Crush on You (1930), Do-Do-Do (1926), S´ Wonderful (1927), Oh, Lady Be Good (1924), Strike Up the Band (1927), Embraceable You (1930), Someone to Watch Over Me (1926), He Loves, and She Loves (1927), But Not for Me (1930).

Dei-me ao trabalho de anotar o texto inteiro do começo que eu considero uma obra prima (na época era tão fã do filme que cheguei a comprar o roteiro dele, em francês! Mas não sei onde foi parar). Aqui vai o que narra em off Allen:

Capítulo 1. Ele adorava Nova York. Ele a idolatrava fora de proporção. Bem, vamos dizer que ela a romantizava em excesso. Para ele, não importava qual fosse a estação era uma cidade que ainda existia em preto e branco (Isto explica então porque suas escolhas estéticas) e pulsava ao som das grandes melodias de George Gershwin. Não, me deixe começar novamente.

Capítulo 1. Ele era romântico demais em relação a Manhattan, como era com tudo mais. Ela adorava estar no meio da multidão e do trafego. Para ele, Nova York significava mulheres bonitas e homens espertos que pareciam saber de tudo. Não. Ficou melodramático demais para o meu gosto. Vou tentar fazer algo mais profundo.

Capítulo 1. Ele adorava Nova York, para ele uma metáfora da decadência da cultura contemporânea, a mesma falta de integridade individual que conduzia as pessoas a procurar a saída mais fácil, rapidamente transformando a cidade de seus sonhos em ...Não, vai parecer sermão, afinal eu quero o livro venda.

Capítulo 1. Ele Adorava Nova York, embora para ele fosse uma metáfora... Como era difícil viver numa sociedade “dessensibilizada” pelas drogas, pela música alta, crime, lixo. Está muito inflamado, não quero parecer raivoso.

Cap. 1. Ele era tão duro e romântico quanto a cidade que ele amava. Por trás dos óculos pretos estava a potência sexual de um felino selvagem. Adorei isso. Nova York era sua cidade ideal e sempre seria”. (Continua a música em cima de fogos de artifício na vista noturna de Manhattan).

A história começa então no restaurante favorito de Allen, o Elaine´s (que por sinal fechou neste ano de 2011!). Estão conversando ele, a namoradinha Tracy e o casal amigo Yale (Michael Murphy, que fez com Woody Testa de Ferro por Acaso) e Emily (Anne Byrne, que na época era casada com Dustin Hoffman, se divorciaram no ano seguinte e ele se casaria com Lisa Gottsegen, com quem teve mais quatro filhos e com quem vive até hoje. Anne não fez mais carreira, mas tem uma figura leve e simpática na tela). Eles fazem uma variante daquela brincadeira de quem salvariam antes de se afogar, mas a cena estabelece a relação do herói Isaac que namora Tracy que é ainda menor de idade aos 17 anos (ela diz estar apaixonada mas ele não a leva a sério, tem problemas também porque ela confunde as estrelas do passado, Veronica Lake ou Rita Hayworth?A diferença de repertório é sempre um problema!). Yale também lhe confidencia que está tendo um caso sériocom uma mulher que conheceu, Mary (Diane Keaton) e o filme a partir dali irá contar paralelamente a história dos dois casais, enquanto eles desfilam e tem uma vida paralela pela Nova York dos intelectuais.

O contraponto com o outro casal na verdade interessa menos e é a parte mais fraca do filme (eis uma lista parcial dos lugares que o filme mostra: Quinta Avenida, Museu de História Natural, Bloomingdale´s, Broadway, Central Park, Cinema Studio (já demolido), Dalton School, Dean and De Luca, Empire Domer. Englewood e Palisades em Nova Jersey, Greenwich Village, Hayden Planetarium, John´s Pizzeria, Lincoln Center, Madison Avenue, Metropolitan Museum of Art, Moma, Porto (Harbor) de Nova York, Nyack, Park Avenue, Queensbouro Bridge, Riverview Terrace, Rizzoli Bookstore, Russian Tea Room, Museu Guggenheim, Staten Island Ferry, Sutton Square, Uptown Racquet Club).

Tentei entender porque Woody não gosta muito do filme e a minha teoria é que este foi justamente o último trabalho dele com Diane Keaton como musa (era o sexto juntos e ela já tinha ganhado o Oscar por Annie Hall em 1978) Naquela altura o namoro deles já devia estar acabando (Diane teria então dois longos casos, um com Al Pacino, que ficou secreto, e outro mais público e longo com Warren Beatty). Acho que ele pintou aqui um retrato de uma mulher chata e insatisfeita como a própria Diane era. Foi que se de certa maneira estivesse expulsando ela de sua vida e obra, exorcizando. Já que sua Mary, tem aspecto encantador, mas fala demais, é inconstante, pretensiosa e no final das contas não merece confiança. O irônico é que logo depois em 1982, ele começaria a série de filmes como a nova musa Mia Farrow, que resultaria em vários grandes trabalhos (10 filmes, se contei certo) para tudo terminar tragicamente com um escândalo e ele se casando com a filha adotiva dela!). Mas Diane, que pode ser louquinha, mas é bom caráter, faria uma ponta cantando em A Era do Rádio e viria em seu socorro quando em pleno escândalo Mia largou o filme Maridos e Esposas e ela a substituiu na última hora!

Naturalmente Manhattan está cheio também de frases brilhantes e piadinhas divertidas como Allen ainda cultivava na época: Fofocas são a nova pornografia, Meu orgasmo foi errado diz Diane e ele replica: "Eu nunca tive um assim, o meu pior foi ótimo, Rosbife não deveria ser azul (diante de carne podre), Eu me sinto como uma numa peça de Noel Coward, alguém deveria estar preparando martinis. Acho que as pessoas deveriam se acasalar para a vida inteira, assim como fazem os pombos e os católicos; Voce é tão dono da verdade, pensa que é Deus!". Responde Woody: "Eu tinha que encontrar alguém como modelo! Isso é tão antiséptico, vazio. Voce acha engraçado? Voce está seguindo a reação da plateia, que cresceu vendo televisão, seus padrões são sistematicamente abaixados através dos anos. Essa gente se senta diante da teve e os raios gamas devoram seus cérebros! Seus amigos são muito interessantes, me lembram um elenco de filme de Fellini; Por que se divorciou?". Resposta: "Porque minha mulher fugiu com outra mulher! Isso deve ter sido desmoralizante". Resposta: "Não sei, eu aceitei bastante bem, apenas tentei atropelar as duas; O que disse seu analista?". Resposta: "Não sei, ele teve uma experiência muito ruim com ácido lisérgico!". E assim por diante.

Dentre outros charmes o filme traz a ainda não muito famosa Meryl Streep em apenas três cenas como a ex-mulher de Allen/Isaac, que agora virou lésbica. Ela está jovem, bonita, com cabelos muito lisos e nesse mesmo ano ela ganhou seu primeiro Oscar, de coadjuvante por Kramer versus Kramer. E curiosamente ponta de Tisa, irmã de Mia (ou seja, ela já estava rondando...). Outra coisa impressionante é que este foi p primeiro filme de Allen em Widescreen anamórfico e ele utiliza de forma notável os enquadramentos, muitas vezes num único lado (ou canto), como se fossem verdadeiros quadros ou pinturas. Ele não permitiu que o filme passasse na TV de outra forma e isso causou um problema, porque havia um norma de que não podia ter na TV pedaços em negros (o jeito de burlar isso foi usar o cinza, a mesma coisa em Home Video, onde foi o primeiro a sair nesse formato que hoje é o normal para qualquer televisão).

Há outro momento que me encanta que serve também de boa brincadeira para uma festa. Quando entra em crise, Isaac pega um gravador e começa a mencionar as coisas que fazem a vida valer a pena de ser vivida. E vai citando: Groucho Marx, Willie Mays (jogador de beisebol), O Segundo Movimento da Sinfonia Jupiter, Louis Armstrong interpretando Potato´s Blues (ele adora jazz), Educação Sentimental, de Flaubert. Brando. Sinatra. As maçãs e peras de Cezanne, filmes suecos naturalmente, os caranguejos de Sam Wo´s e o rosto de Tracy. Isso o faz se arrepender e ir atrás da ex –namorada que tinha dispensado. Mas ao chegar lá ela está para partir com bolsa de estudos por seis meses e recusa sua proposta.

A figura de Tracy feita com muita doçura e ingenuidade por Mariel Hemingway- em papel que tentaram antes botar Jodie Foster, que seria um engano - parece ter sido inspirada por uma ex-namoradinha de High School de Allen, que foi Stacey Nelkin (atriz que ainda trabalha e fez com ele Tiros na Broadway). Aí acontece o último diálogo do filme que é outro momento inesquecível.

Tracy: "Eu voltarei em seis meses". Issac: "Está brincando, seis meses!". Tracy: "Você acha que daqui a 6 meses a gente não vai se amar?". Isaac: "Não banque a madura, ok? Seis meses é um tempo longo. Você vai estar no teatro, com atores e diretores, vai mudar. Daqui a 6 meses vai ser uma pessoa completamente diferente". Tracy: Bem, você não queria que eu tivesse essa experiência? Há pouco tempo me convenceu disso".Isaac: "Sim, é claro, mas você sabe... Eu não queria que mudasse essa coisa que eu gosto em você". Tracy: "Eu tenho que pegar o avião". Isaac: "Vamos lá, você não precisa ir". Tracy: "Você não podia ter falado isso semana passada? Seis meses não é tanto tempo assim. Nem todo mundo se corrompe. Você tem que ter um pouco de fé nas pessoas.”

Esta é a última frase do filme, a câmera fica no rosto de Woody/Isaac, que pensa desconfiado e depois abre um sorriso discreto. Não tem remédio, mas ele vai ter que esperar. Errou em deixá-la e agora tem que pagar o preço. E provavelmente ela voltará diferente e perderão essa chance. Acho isso, porque eu, como Allen não tenho muita fé nas pessoas.

Manhattan é possivelmente a obra-prima do autor, antes dele enveredar bobamente por dramas e imitar seus ídolos Bergman e Fellini. Mas fez tantos filmes e teve tantas fases que qualquer avaliação precisa de mais tempo. Ao menos é uma obra prima de comédia romântica, com imagens memoráveis (como a do pôster e que foi encenada especialmente para o filme, não se consegue reproduzir em foto de turista), sacadas inesquecíveis (a lista que ele faz das coisas que dão razão para a gente viver originalmente incluía Pelé) e um final perfeito ao mesmo tempo cínico e encantador.

PS- Duas curiosidades: os filmes citados em Manhattan de uma forma ou outra: Terra (1930), Luzes da Cidade (1931), A Grande Ilusão (1937), E o Vento Levou (1939), Casablanca (42, ele repete a frase "Nós sempre teremos Paris"), La Ronde de Ophuls (50), Chushingura (62), O Silêncio, de Bergman (63), 2001, de Kubrick (68).

Outra: numa sequência ele briga com Mary que considera superestimados alguns ídolos de Isaac /Allen. A Saber: Gustav Mahler, Lenny Bruce, Carl Jung, Isaac Deninsen, F. Scott Fitzgerald, Van Gogh, Heinrich Boll,Walt Whitman e a Ingmar Bergman, a que chama de “o único gênio do cinema”.