03
de maio de
2004
O crítico
norte-americano Roger Ebert considera Pulp fiction (1994) como
um dos cem mais belos filmes já feitos e assevera: “É o
diálogo que conduz Pulp fiction, de Quentin Tarantino,
diálogo de tão alta qualidade que é digno
de ser comparado com outros mestres da prosa enxuta e rude, de
Raymond Chandler a Elmore Leonard.” O crítico gaúcho
radicado em São Paulo Luiz Carlos Merten anotou: “Em
Tempo de violência, o humor está todo nos diálogos,
muito bem escritos ou escritos adequadamente, porque Tarantino,
que fez parcos estudos, sabia como usar o verbo para expressar
a boçalidade.” Mas lamenta que a união de
Tarantino com seu medíocre “mano cinematográfico” Robert
Rodriguez o tenha inserido em projetos tão pouco dignos
de seu talento; e, considerando que talvez o futuro do cinema
tenha esquecido a revolução Tarantino, se pergunta: “A
questão é saber se, em 2003, o caso Tarantino está mesmo
encerrado ou se ele ainda tem volta.” (Cinema,
entre a realidade e o artifício, 2003).
A
resposta à indagação de Merten está no
novo Tarantino, Kill Bill, volume 1 (2003); em seu quarto filme
(assim anunciado desde os créditos sobrepostos ao título),
o cineasta chega à sua melhor forma e tudo o que poderia
faltar em seus trabalhos anteriores é preenchido aqui
com surpreendente grandeza. Pode ser que ainda seja exagero ver
na maneira original com que Tarantino monta suas citações
cinematográficas e literárias do baixo mundo algo
tão revolucionário quanto o cinema do norte-americano
Orson Welles ou o do francês Alain Resnais; mas Kill
Bill apaixona por sua constante criatividade visual. Sempre se falou
da potência dos diálogos diretos de Tarantino; em
Kill Bill o que mais impressiona é a intensidade da montagem
e os aspectos de um balé cinematográfico (as cenas
de sangue e luta, especialmente um trecho de seqüência
que filma as sombras das personagens que se enfrentam: gloriosa
homenagem ao expressionismo cinematográfico) jogam a narrativa
para um evento plástico quiçá único
no cinema de hoje, só topando rival em O
tigre e o dragão (2001), do chinês Ang Lee.
Tarantino
se vale de todos os clichês as obras e ação
e aventura (no cinema e na literatura) para subverter o gênero
a que eventualmente se filiaria; os desastres artísticos
dos filmes dirigidos por seu parceiro Robert Rodriguez, a quem
Tarantino fraternamente dedica sua atual produção,
dão bem a medida de que a diferença se dá na
cabeça por trás da câmara. Kill Bill está longe
de ser um filme centrado na realidade, embora use e abuse dum
assunto muito real, a violência, e se refira a algo muito
palpável em todos os indivíduos, o desejo de vingança;
os exageros de Tarantino fantasiam o tema real que é a
violência, e soa característico que a longa seqüência
de desenho animado pareça indicar a estrutura alegórica
e debochada da realização. Se em outras eras o
norte-americano Sam Peckinpah, com sua especial câmara
lenta e seus tortuosos malvados durões, foi tido como
um “poeta da violência”, o Tarantino desta
virada de milênio é mesmo a “gargalhada do
sangue”. Nada é muito sério nas encenações
de Tarantino (cada fotograma, isoladamente, seria uma grosseira
piada de botequim), mas ao mesmo tempo as montagens alucinadas
de seus filmes são o que de mais sério e produtivo
o cinema americano de hoje pôde produzir.
Por Eron Fagundes
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