O Brasil é conhecido mundialmente por suas novelas, que traz uma estrutura narrativa bem diferente das americanas. As brasileiras misturam elementos tradicionais das novelas com elementos de séries de TV, filmes e obras literárias, tornando-as um produto diferenciado das novelas normalmente produzidas nos EUA.
Talvez seja por isso que no Brasil não se invista tanto em outros gêneros narrativos. Com isso, ficamos atrás na produção de séries televisivas. Uma ou duas vezes por ano, são lançadas minisséries, as quais, no Brasil, tiveram inÃcio nos anos 80, com uma década de atraso em relação aos EUA e três décadas depois da Inglaterra. Talvez seja por isso que é tão difÃcil escrever e produzir séries brasileiras, já que, tanto a televisão quanto o público, estão acostumados à narrativa de novelas. Quando uma série é produzida por um canal de televisão - e não por uma produtora independente - corre-se o risco de se confundir com a narrativa ou a interpretação noveleira. Como resultado, temos poucos produtos de qualidade nessa área.
As séries de televisão sempre foram encaradas como produto tÃpico americano e as novelas como produto tÃpico brasileiro. Mas, de quando em quando, surge uma produção na linha série televisiva brasileira que faz diferença e se destaca. “Ciranda Cirandinha†é uma delas. Tendo apenas sete episódios no DVD, a série não teve tempo de se desenvolver, mas com a amostragem apresentada já se tem uma idéia do que poderia ter se tornado.
A trama traz a trajetória de quatro amigos que por motivos diversos vão morar juntos em um apartamento. Tentando ganhar a vida para pagar o aluguel, cada um dos jovens tem um sonho impossÃvel de se realizar, tendo em vista a dura realidade brasileira do final dos anos 70. Ainda fortemente influenciados pelas ideologias de filósofos e pensadores que fizeram nome nos anos 30 e 40, esses jovens que retratam a geração hippie, filhos da ditadura militar, são os últimos representantes brasileiros de uma ideologia sufocada pela repressão cultural e polÃtica. Algo que daria seu último suspiro nos anos 80, com a abertura polÃtica. Pois seria varrida pela “geração coca-cola†que, ao chegar aos anos 90, já não tinha mais nenhum resquÃcio daquilo que fora um dia uma geração jovem moldada pelos sonhos e ideologias e não pelo capitalismo e a necessidade de fazer um sucesso na vida.
Hélio (Fábio Jr) é poeta e músico, que sonha fazer carreira com suas composições, gravar um disco, cantar sua música. Já montou banda, já se apresentou em shows usando um nome americano (tal qual o ator e cantor na vida real), agora faz bicos na área, tocando para nomes famosos em uma gravadora, a qual não lhe dá chances de gravar seu próprio disco. Vive pedindo dinheiro emprestado para pagar sua parte no aluguel: Cr$200,00 (duzentos cruzeiros). Mulherengo, ele descobre em um dos episódios que tem um filho. A mãe da criança, vivida por Louise Cardoso, é a representante da geração hippie, que viveu em uma comunidade, comia o que plantava, afastada dos grandes centros urbanos, vivia em uma sociedade que escolhera. Teve que sair de lá e agora está perdida na cidade grande, buscando uma forma de fazer sua vida.
Tatiana (Lucélia Santos) é quase isso, uma hippie. Suas origens são outras. Vem de uma famÃlia rica, de quem tem orgulho de ter se afastado. Sonha ser bailarina e coreógrafa. Divide seu tempo entre ser garçonete em um restaurante natural, dar aulas de balé para crianças e montar seu próprio grupo de dança. A realidade bate de vez em sua porta quando percebe que não dá para ter tudo. No último episódio, ela entra em crise existencial e reavalia sua vida. Chega à conclusão que não dá para fugir da realidade e decide ser “do seu tamanhoâ€, como ela mesma coloca.
Suzana (Denise Bandeira) entende os sonhos de seus amigos. Ela mesma tem o seu: fazer a diferença para seus alunos a quem dá aula de conscientização social. Formada em psicologia, enfrenta a realidade do ensino brasileiro e da falta de interesse dos jovens adolescentes de sua época, aqueles que irão se tornar os adultos dos anos 90, sem ideologias e buscando carreiras com base no sucesso.
O caçula do grupo é Reinaldo (Jorge Fernando). Com 21 anos, formado em Comunicação, sonha em ser escritor e jornalista, mas precisa encarar sua realidade. Acaba arranjando um trabalho como informata, profissão que estava recém-iniciando na década de 70. Para quem desejava entrar em contato com o ser humano, ele se vê preso em meio a máquinas que o distanciam cada vez mais do contato humano. Ao menos realizou outro sonho seu: sair de casa e da influência de seus pais.
O que chama a atenção na série não é sua estrutura didática e beirando à narrativa das novelas com diálogos explicados em seus mÃnimos detalhes. Mas, a força de um pensamento, as idéias de uma geração marcada por uma época em que pouco podia ser dito ou expressado, e, no entanto, conseguem dizer muito mais que as produções de hoje em dia que sofrem apenas a censura imposta pelas próprias emissoras.
Escrita por Domingos de Oliveira, Lenita Ploncynski, Euclydes Marinho e Antônio Carlos Fontoura, o primeiro episódio da série já dá o tom e o rumo que a produção irá tomar. O personagem vivido por Eduardo Tornaghi, que está passando por uma crise existencial e sairá da vida de Tatiana, cria um tribunal fictÃcio no qual está em julgamento a geração jovem dos anos 70. Acusados de trair seus sonhos e suas ideologias, ele os condena por render-se à repressão cultural e social. Apesar das justificativas, o veredicto se mantém ao longo da série. No final do episódio, quando o telespectador é levado a pensar que ele irá tomar uma atitude comum aos seriados americanos, o personagem surpreende decidindo por uma alternativa que o levará a fazer parte daquilo que ele condenou.
E assim a série tem inÃcio, apresentando a cada episódio dramas tÃpicos da sociedade brasileira da época, que continuam presentes: a difÃcil relação com os pais, as limitações pessoais, as dificuldades para se pagar as contas, as constantes mudanças de rumo que a situação financeira nos obriga a tomar, o uso de drogas, o amor livre, as decepções profissionais, o abandono de nossos sonhos e a conseqüente solidão e tristeza.
“Ciranda Cirandinha†fecha seu ciclo com o episódio “O que eu Faço da Minha Vida?†no qual Tatiana (Lucélia Santos), perde o emprego, seu grupo de dança (todos precisam trabalhar e não têm tempo para distrações que não levam a lugar nenhum) e, com isso, precisa levar à s suas alunas a dura realidade dos artistas que vivem no Brasil, desfazendo, assim, os sonhos daqueles que ainda não aprenderam a sonhar. A morte de um conhecido e a tentativa de voltar ao seu lugar ao lado de sua famÃlia faz com que ela tome uma decisão que poderá trair seus ideais, mas que poderão alimentar seus sonhos.
Não se trata, portanto, de uma produção que pretende unicamente expor a realidade ou condenar uma geração, como vemos no episódio que dá inÃcio à série. Mas mostrar que ainda é possÃvel sonhar, ainda há chances de se realizar o que deseja, mesmo que seja seguindo outro caminho. E a série termina assim, com uma esperança no ar, com uma frase de Tatiana para Reinaldo que começa a entrar em crise aos 21 anos de idade: “Se pudesse escolher você nasceria de novo?†Ao que ela mesma responde: “Eu nasceriaâ€.
Assistir a “Ciranda Cirandinha†fatalmente nos levará a perguntar: “O que aconteceu com a TV brasileira?†(
(Fernanda Furquim – confira seu blog RevistaTV Séries)