Crítica sobre o filme "Katyn":

Rubens Ewald Filho
Katyn Por Rubens Ewald Filho
| Data: 15/07/2009

O polonês Andrzej Wajda é um dos principais cineastas em atividade hoje em dia e a atualidade de seu cinema pode ser observada em cada um dos planos que compõem a seca, feroz e cortante montagem de Katyn (2007), seu mais recente filme e que chega agora entre nós para devoração dos admiradores do realizador. Vê-se que Wajda permanece afiadíssimo como um historiador da direção cinematográfica afinado com as questões urgentes de nosso tempo; sua visão política é precisa e sempre impiedosa para com as hipocrisias e os desmandos do poder.

Em Katyn Wajda se volta para um dos episódios mais obscuros e constrangedores da II Guerra Mundial, um episódio passado na Polônia natal de Wajda. É bem verdade que nesta história contada há ecos das lembranças de infância do cineasta, cujo pai foi um dos oficiais poloneses assassinados na floresta de Katyn; e muito da segura emoção que Wajda põe nos gritos e gestos da garotinha que vê seu pai ser levado pelo oficialato ser levada pelo oficialato soviético, vêm do fundo dos tempos aonde Wajda vai com suas memórias para buscar a matéria de seu filme. Mas Katyn de maneira alguma é uma narrativa particular, de interesse regional ou pessoal; o que faz de Katyn um trabalho de nível superior é a arte de Wajda, cuja crueza documental namorada ao longo de todo o filme atinge órbitas paroxísticas na longa e detalhada sequência final onde a imaginação de Wajda estaria descrevendo como se deram as execuções dos poloneses pelos russos.

O que se sabe da II Guerra Mundial é que os alemães criaram o nazismo, mataram multidões de judeus e no fim perderam a guerra para os Aliados (liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética): a história foi contada pelos vencedores, entre eles os russos. Mas há dados periféricos, que vêm de escanteio. A floresta de Katyn, na Rússia, foi cenário dum massacre feito por oficiais russos covardes contra oficiais poloneses indefesos; quando a União Soviética invadiu a Polônia, se tentou reescrever o episódio culpando os vilões que vinham a calhar na época, os nazistas germânicos; o desdobramento da covardia autoritária do fato histórico de Katyn se prolongou pela ocupação soviética na Polônia, continuando a gerar vítimas nos descendentes. O fato histórico mesmo, e revelado com força por Wajda neste filme, é que a covardia não tem nacionalidade; e o poder, pode-se agora insinuar depois das muitas experiências do século XX, é um grande convite à covardia, no caso a covardia autoritária.

É curioso observar que a floresta, que em Um ato de liberdade (2008), do norte-americano Edward Zwick, testemunhou a existência duma comunidade rebelde ao genocídio nazista, em Katyn foi o silencioso olho que viu uma vergonhosa chacina dos russos contra os poloneses. E, entrelaçando os dois filmes, cabe constatar a superioridade de Wajda, a despeito das boas intenções de Zwick, pois em momento algum Wajda, mesmo tratando de um episódio epidérmico para ele, se deixa acorrentar a certas pieguices do espetáculo cinematográfico. Talvez possa parecer anacrônico referir que o rigor europeu de Wajda não pode ser topado no cinema americano senão como pastiche; mas é uma realidade que se precisa encarar quando se dá com uma obra como Katyn, que traz os habituais rebeldes do cineasta: a viúva e a órfã dum oficial morto em Katyn evocam outras criaturas de Wajda, como a estudante de cinema Agnieszka de O homem de mármore (1976) e o revolucionário caído em desgraça Danton em Danton, o processo da revolução (1982). (Eron Fagundes)

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Este é o filme mais pessoal do grande diretor polonês Andrewz Wajda, vencedor do Oscar® especial, e autor de grandes obras do cinema, como Cinzas e Diamantes, e depois O Homem de Mármore e O Homem de Ferro, que o puseram como líder do movimento Solidariedade, Após 80 e poucos anos, ele consegue ter a chance de, finalmente, contar sua maior tragédia pessoal: a morte de seu pai, oficial polonês da Segunda Guerra, cujo corpo nunca foi encontrado. Ele foi uma das vítimas de uma das maiores tragédias da Segunda Guerra, que até agora nunca tinha tido uma divulgação maior. Em 1940, os oficiais poloneses, na verdade a elite do país, foram presos e fuzilados pelos soviéticos - num lugar chamado Katyn -, que durante anos esconderam o fato e acusaram os nazistas. Em 1990, finalmente, admitiram  a culpa. Um pouco tarde, digamos.

O curioso é que o poder do mito comunismo é tão grande, que não se vê quase filmes acusando-os de invasores e ditadores, que abusaram do poder. Nem mesmo nos países do leste europeu, que sofreram tanto sob seu jugo, na chamada Cortina de Ferro. Mais um mérito deste filme seco, duro, baseado em documentos e na vida da própria família do diretor. Ele evita o suspense, o thriller, mesmo o romance, deixando as imagens falarem mais do que os discursos. Vai apresentando, até mesmo de forma confusa, vários personagens e histórias paralelas, introduzindo os problemas dos sobreviventes (a família, os filhos), todos lutando contra a nova Polônia, agora comunista, onde você tem que aceitar a verdade oficial, senão vai para a cadeia. Ou colabora, ou vai preso, sem alternativas, até porque todos os possíveis líderes locais haviam sido mortos.

É uma situação que, se fosse perpetrada pelas forças da Direita, já teria rendido um número enorme de fitas e denúncias. Aqui, resta a Wajda a triste tarefa de relatar os fatos, deixando para mostrar as mortes apenas ao final, numa longa seqüência, que costura os diversos fios de meada: houve a história do oficial dado como morto, e que agora não suporta a culpa; a do jovem rebelde que, por um ato juvenil de bravura, acaba morto; a da mulher que, como Antígone - citada literalmente -, vai presa por tentar dar uma lápide ao irmão assassinado. Tudo isso se fecha num filme sem concessões, nada melodramático, e que é perfeitamente sintetizado na cena inicial quando, numa ponte, as pessoas fogem do invasor nazista, enquanto outros vêm do lado oposto, fugindo de outra invasão, a soviética. Se correr o bicho pega, se ficar...

É um dilema trágico, que sintetiza e resume todo o problema da Polônia. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 29 de abril de 2009)