O cineasta alemão Wim Wenders teve a sorte cinematográfica de filmar praticamente a morte (ou os dias de agonia, que sempre simbolizam a inalcançável experiência final) de um de seus mestres, o realizador norte-americano Nicholas Ray em Um filme para Nick (1980), conhecido pelo duplo título de Lithning over water e Nick’s movie. Concebido inicialmente como um projeto-conjunto de Wenders e Ray (“Vamos fazer um filme juntos”, propõe Ray a seu amigo germânico), Um filme para Nick é uma espécie de sepultura cinematográfica que Wenders erige para Ray; acompanhando em duas visitas a Nova York os dias finais e doentes do diretor de Juventude transviada (1955), Wenders faz um belo filme-sepultura, doloroso é verdade, mas capaz de recriar no cinema uma experiência inefável, que habitualmente não podemos narrar aos outros, a da própria morte. Wenders esforça-se por transferir a Ray a narrativa da automorte: o longo plano-sequência do rosto e das palavras de Ray quase ao final é sintoma deste esforço; mas na verdade outra vez a morte é vista de fora, pelo outro, ainda que a crueldade de filmar de Wenders vá transpondo uma barreira perigosa.
Pela mesma época, em outro documentário, Minha ilha (1979) o sueco Ingmar Bergman filmava a morte de um de seus vizinhos da ilha de Farö, um poeta. A desabusada forma de Wenders acaba contrastando com o rigor assustadoramente nórdico de Bergman. Mas ambas as realizações são buscas de se aproximar desta experiência que não podemos narrar, a morte.
Wenders, em seu filme, não esconde seu fascínio humano e artístico diante da figura de Ray, ainda que seu mestre esteja agora desfigurado pela velhice e pela doença. Mas o cinema de Wenders, sabe-se, distancia-se facilmente do de Ray. O que talvez atraia um para o outro é o lado itinerante de suas personalidades e uma amizade que, vê-se pelo documentário, se formou entre dois grandes homens de cinema. Em 1985 Wenders rodou no Japão Tokyo Ga; foi atrás de outro de seus precursores, o japonês Yasujiro Ozu, falecido há décadas; ali o alemão não construiu cinematograficamente a sepultura de Ozu, como fez com Ray, mas pairou sobre a evocação duma sepultura; no entanto, está bastante claro que o semidocumental de Ozu fez mais estragos no cinema de Wenders que os melodramas policiais de Ray.
Lembre-se ainda que este filme-sepultura foi precedido de uma pré-sepultura dentro do filme O amigo americano (1977), onde Nicholas Ray fazia uma ponta.