05
de janeiro de 2004
Apresentação:
Fanny e Alexandre (Fanny och Alexander; 1982), um dos mais digeríveis
filmes do geralmente austero cineasta sueco Ingmar Bergman, volta
aos cinemas brasileiros quase vinte anos depois de suas primeiras
exibições por aqui.
O realizador
nórdico Ingmar Bergman é bastante
conhecido e apreciado por mergulhos profundamente sombrios na
alma humana, de parábolas semi-expressionistas como O
sétimo selo (1956) e Morangos silvestres (1957) a cruéis
investigações afetivas materializadas em obras
como Gritos e sussurros (1972) e Sonata de outono (1978). Em
todos estes filmes e em muitos outros e mais ainda naqueles realizados
nos anos 70 a câmara de Bergman se concentra em cenários
extremamente fechados para produzir narrativas intensamente introspectivas.
Talvez o principal desvio desta “tristeza de filmar” de
Bergman seja a obra-prima Sorrisos de uma noite de verão (1955), algo mais descontraído e álacre dentro
de seu universo de sombras.
O
derradeiro trabalho que Bergman rodou para cinema, Fanny
e Alexandre,
retoma o espírito mais aberto de Sorrisos de
uma noite de verão, descontraindo sua relação
com o espectador e buscando pontos mágicos do espetáculo
cinematográfico que ampliam o público capaz de
desfrutar de um Bergman assim concebido: não é por
acaso que o cineasta recebeu um Oscar, a estatueta de um cinema
mais comercial, por este seu trabalho. Mas, ainda bem, Bergman
não estabelece concessões: seu rigor formal e sua
fidelidade espiritual estão presentes em cada fotograma;
a aproximação ao público se dá naturalmente.
É
claro que Bergman não atinge a mesma profundidade metafísica
de suas melhores realizações. Mas troca a agudez
psicológica por aspectos mais terra-a-terra com o observador;
a crônica de uma família sueca no início
do século XX tem certos instantes triviais, como a daquele
tio que reúne as crianças à margem da sisudez
da reunião de Natal para soltar seus fogos natalinos:
na verdade, se trata de peidos mesmo, os ditos fogos. A utilização
de cenários por Bergman chega aqui e ali a uma capacidade
de deslumbramento que em boa parte de seus filmes dos anos 70
(Da vida de marionetes, 1980, é o auge da abstração
da ambientação) se concentrava nos rostos dos atores.
Estamos diante de um Bergman alucinadamente mágico, longe
do ente de razão que dirigira os filmes imediatamente
anteriores do diretor. A trajetória familiar do menino
Alexandre –a morte do pai, o segundo casamento de sua mãe,
os maus tratos da educação protestante do padrasto—funde
desabusadamente imaginação e realidade numa cabeça
infantil; neste aspecto, Bergman perde aqui para o cineasta espanhol
Carlos Saura, que em Cria Cuervos (1976) executa estas associações
com uma criatividade cinematográfica muitas vezes maior.
Mesmo assim, é comovedor acompanhar a magia visual de
um realizador geralmente tido por racionalista. Ao cabo da fita,
uma personagem lê um trecho da peça “O sonho”,
em que August Strindberg tergiversa sobre as confusas relações
entre sonho e realidade, os limites difusos da verossimilhança,
que é também o tema do filme Fanny e Alexandre.
Entre
a ruidosa ceia de Natal do início de sua história
e a igualmente barulhenta confraternização à mesa
que encerra a projeção, Fanny e Alexandre repassa,
com inusitado bom humor e extroversão para os padrões
do cineasta, os assuntos que inquietaram Bergman em toda a sua
extensa filmografia.
ANEXO
FINAL: Ao iniciar meus textos de um novo ano, ofereço
aos visitadores desta página (convidando-os para fazer
o mesmo) meus melhores e meus piores filmes vistos em 2003 em
Porto Alegre, cidade onde resido; vi cento e setenta e seis lançamentos
este ano. Os dez melhores, por ordem de preferência: “Conto
de inverno”, de Eric Rohmer (O MELHOR DO ANO); “As
invasões bárbaras”, de Denys Arcand; “Arca
russa”, de Alexander Sokurov; “Dez’, de Abbas
Kiarostami; “Dirigindo no escuro”, de Woody Allen; “O
pianista”, de Roman Polnasky; “Conto de outono”,
de Eric Rohmer; “Dolls”, de Takeshi Kitano; “Ararat”,
de Atom Egoyan; “Coração de fogo”,
de Diego Arsuaga. Os dez piores, por ordem de ruindade: “Acquária”,
de Flávia Moraes (O PIOR DO ANO); “Freddy vs Jason”,
de Ronny Yu; “Bad boys 2”, de Michael Bay; “Demolidor,
o homem sem medo”, de Mark Steven Johnson; “American
Pie 3, o casamento”, de Jesse Pylan; “O exterminador
do futuro 3: a rebelião das máquinas”, de
Jonathan Mostow; “O olho que tudo vê”, de Marc
Evans; “Mais velozes, mais furiosos”, de John Singleton; “Hulk”,
de Ang Lee; “Tratamento de choque”, de Peter Segal.
Por Eron Fagundes
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