Conversas Cruzadas
(colaboração Antonio Augusto Berthier Boaretto)

O Conversa de Casa reuniu três especialistas em cinema para trocar algumas idéias. O encontro ocorreu logo após a sessão do Clube de Cinema de Porto Alegre que exibiu o filme Coração de Fogo, no café do Unibanco Arterplex e reuniu o crítico de cinema do jornal ABC Domingo e programador do Clube de Cinema de Porto Alegre, Goida; o crítico Eron Duarte Fagundes, do site DVD Magazine e o responsável por esta coluna, Paulo Casa Nova.

Paulo Casa Nova - O conceito de filme ideal ainda é algo válido tanto para o crítico, como para o espectador, ou ainda para o produtor de um filme?

Eron Duarte Fagundes - Estabelecer parâmetros para o filme ideal é um exercício meio autoritário. Eu estou aberto para qualquer coisa e se eu examinar os filmes que me apaixonaram nesses anos vou ver que são filmes muito diferentes um dos outros. Então não existe parâmetro para filme ideal no meu ponto de vista. Por exemplo, a Doce Vida, do Federico Fellini, que é um filme extremamente extrovertido e Gritos e Sussuros, do Ingmar Bergman, que é um filme introvertido; um filme experimental, bastante cerebral como é o Poder dos Sentimentos, do Alexander Kluge e um filme do Carlos Saura, o máximo da sensibilidade Elisa, Vida Minha. Além disso, eu gosto do cinema como um todo, eu sou mais daquela frase do Vinícius de Morais quando ele escrevia sobre cinema que qualquer filme por pior que seja sempre vai me interessar, sempre vai haver alguma coisa da magia do cinema. Vou fazer até uma provocação: Casablanca não é o meu filme preferido, eu respeito, é um clássico do cinema, acho agradável de ver, mas jamais colocaria como o meu filme ideal. Acho que a gente tem que estar aberto para receber até a surpresa daquele filme que a gente pensaria que teria todos os elementos para ser um mau filme.

Casa Nova - Se não tens um filme ideal, tens um filme preferido, ou um grupo de filmes?

Eron - Eu acredito que todos nós temos, além desses que eu citei os filmes do Robert Bresson, A Grande Testemunha ("Au Hasard Balthazar", 1966 ); do Fellini, Amarcord, Roma. Mas se a gente examinar esses filmes vai ver que muitas vezes eles não tem muita coisa em comum, a não ser o fato de serem filmes. É claro que na minha maneira de ver o cinema algumas coisas tocam mais.

Casa Nova - Eu parto do princípio do que o filme está me prometendo e tento verificar ao longo do filme se esse filme cumpriu a promessa inicial. Trata-se da própria expectativa que o filme gera e ver se ele cumpre e em que grau. E eu avalio nessa interrelação como espectador informado se ele cumpriu a promessa que fez. Goida, como nos velhos faroestes tu estás quieto demais.

Goida - É que a gente está sob o impacto de um filme muito bom, o Coração de Fogo. Por quê esse filme é tão importante para a nossa geração? Porque de certa maneira recupera a idéia do herói positivo, que mesmo sabendo que pode fracassar ele continua e continua, que era muito do cinema norte-americano isso, e essa idéia de certa maneira se incutiu a toda uma geração, é uma geração que pode perder mas continua, uma geração que luta muito pela cultura, onde a gente sabe que tem que pagar para trabalhar. Então esse tipo de filme como os uruguaios fizeram, o Diego Arsuaga fez, ele realmente comove muito porque lembra esse tipo de direção em que a gente tenta dar a vida e que lamentavelmente o cinema está perdendo. Quando nós passamos Rastros de Ódio, na Sociedade Germânia, e eu pude rever o filme pensei que coisa maravilhosa, conseguiu lidar com espaço, com personagens que de certa maneira engrandeciam tanto a presença da gente dentro do cinema, que sai emocionado, gratificado e feliz por estar dentro do cinema. Eu sempre digo que fui um péssimo aluno, não no sentido disciplinar, mas porque não gostava do que aprendia no colégio, eu gostava de ler e de ir ao cinema e graças à leitura e ao cinema não virei um imbecil completo. O cinismo tomou conta da humanidade em certos momentos e alguns filmes nos devolvem essa pureza de tentar fazer as coisas, de tentar ser correto, uma boa pessoa, mesmo que isso seja difícil.

Às vezes a gente faz algumas injustiças com o cinema ideal. Eu me lembro que no ano que passou A Fonte da Donzela (Jungfrukällan, Bergman, 1959), na mesma semana estava sendo exibido um filme do John Ford O Aventureiro do Pacífico, que era um filme meio brincalhão com o John Wayne e Lee Marvin, mas tinha um plus e eu me lembro que fiz uma injustiça tremenda na época, afirmei no jornal que o filme do John Wayne era muito mais cinema do que o do Bergman (Ingmar) e me arrependo amargamente de ter dito isso, porque quando eu revi o filme do Bergman, que filme limpo, bem feito, poderoso. A gente muda com o tempo, quem diria há vinte anos atrás que o cinema iraniano iria apontar caminhos positivos e diferentes, a gente ia cair na risada. O que é o neorealismo hoje? é o cinema iraniano, que cada vez nos mostra que o cinema humano, da simplicidade, da falta de recursos, filmado na rua, com gente do povo, não tem nada a ver com a teoria política, esse cinema ainda comove a humanidade. Depois de ver Coração de Fogo tu diz: Goida tu vai ganhar mil dólares para ver Matrix, eu digo não, não, acho que vocês vão ter que pagar um milhão de dólares, agora o Coração de Fogo eu vou ver de novo, de graça. Lamentavelmente, o cinema norte-americano está se auto-destruindo no apresentar um trailer. Às vezes, o filme pode até ser bom, mas os trailers são tão imbecis, tão jogos eletrônicos, que tu diz não quero ver esse filme, não tem nada, não tem gente, sentimentos, valor, só artificialismo.

Eu acho muito ruim a gente ficar na nostalgia, tem alguns filmes modernos de algumas cinematografias, que custam chegar até nós, que nos comovem profundamente, e nos dizem que o cinema ideal pode ser o cinema de aventura, musical, a comédia, mas tem que ter valores. O cinema é regido por três valores: o humano, a realização formal e a capacidade de comunicação universal.

Casa Nova - Nós temos um momento, pelo menos desde Carlota Joaquina, chamado de retomada do cinema brasileiro. Na avaliação de vocês que caminho o cinema brasileiro está tomando, me parece que pelo menos em termos de público ele tem tido uma grande resposta. A gente tem condições de conquistar audiências fora do Brasil?

Eron - Eu acredito que o cinema brasileiro está num bom momento. Tem filmes pouco referidos mas que são bons como Dois Córregos, do Reichenbach (Carlos), Cronicamente Inviável, do Bianchi (Sergio), O Príncipe, do Georgetti (Ugo), que para mim são os três melhores filmes brasileiros realizados nos últimos anos. Só que eles não têm o público de Carandiru ou Cidade de Deus, que são bons. Há uma multiplicidade de caminhos, a conquista de mercado vai depender de uma série de fatores.

Goida - Graças a Deus nós nunca vamos poder fazer filmes como os norte-americanos fazem hoje em dia. O Eron citou filmes maravilhosos que não tiveram o público que tem esses blockbuster do cinema brasileiro que curiosamente são bons. Carandiru e Cidade de Deus são filmes que em termos de público conseguiram um fenômeno muito curioso: levar para o cinema o público classe C e classe A. Hoje o sentido maior do cinema brasileiro está sendo alcançado, uma coisa que não acontecia no passado, nos documentários e nós tivemos, principalmente no ano passado, talvez as maiores emoções do cinema brasileiro. Janela da Alma, Edifício Master, esse ano nós tivemos o Nelson Freire, que é maravilhoso, em Gramado eu vi um documentário sobre Lúcio Costa, excepcional. Nós vamos tentar passar no Clube o Paulinho da Viola, que todo mundo diz que é muito bom. Também O Prisioneiro da Grade de Ferro, feito em Carandiru filmado pelos próprios prisioneiros. Então, esse tipo de filme nos recupera o real sem perder a capacidade de comunicação. A gente nunca pode esquecer que nós fazemos filmes no terceiro mundo e nunca temos recursos para fazer um filme como gostaríamos de ser feito. Vai passar um filme chamado Celeste & Estrela, da Betsy de Paula, que fala exatamente o que é fazer cinema longa-metragem no Brasil.

Casa Nova - O nosso associado em geral vai pouco a salas de cinema, ele assiste em vídeo ou DVD, ou na televisão, eu queria que vocês falassem sobre o que é ver cinema nas primeiras fileiras em uma sala de exibição.

Eron - Eu acho que o vídeo e o DVD funcionam como complemento para a gente rever alguns filmes, os que não chegam no cinema. Os filmes que foram feitos para a dimensão da tela grande eles devem ser vistos ali, porque se perde bastante qualidade no DVD e no vídeo.

Goida - Vou contar um episódio que me aconteceu em Torres há uns cinco anos atrás. Eu fui convidado para fazer uma palestra sobre cinema e quis exibir um filme também. Eu disse vamos tentar convidar bastante pessoas, principalmente de cursos de segundo grau, pois o filme era Meu Adorável Professor, do Richard Dreyffus. Antes de começar o filme fiz uma pequena apresentação e perguntei quantas pessoas já tinham visto filmes no cinema, devia ter mais de 300 pessoas na sala, uns três ou quatro apontaram o dedo. Quando começou o filme ainda tinha um certo zunzun e dali um pouco foi um silêncio e o filme era longo, quando terminou o filme eu perguntei ou vocês gostaram tanto do filme, ou dormiram? e eles não, não dormimos não, o filme é muito bom. Isso dá a dimensão do que o cinema na tela grande. A primeira vez que a pessoa vai ao cinema sente uma emoção muito grande, faz parte da vida da gente, e de uma maneira tão forte que por mais que a televisão seja aperfeiçoada é em casa, não se apagam as luzes, o telefone toca, o cachorro grita, tem que atender alguma coisa. O cinema intimiza a pessoa, mesmo tu estando com a presença física da pessoa do teu lado você está isolado, claro tem que ser um filme bom, não pode ser um Matrix.


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