O Conversa de Casa reuniu três especialistas em
cinema para trocar algumas idéias. O encontro ocorreu
logo após a sessão do Clube de Cinema de
Porto Alegre que exibiu o filme Coração de
Fogo, no café do Unibanco Arterplex e reuniu o crítico
de cinema do jornal ABC Domingo e programador do Clube
de Cinema de Porto Alegre, Goida; o crítico Eron
Duarte Fagundes, do site DVD Magazine e o responsável
por esta coluna, Paulo Casa Nova.
Paulo Casa Nova - O conceito de filme ideal ainda é algo
válido tanto para o crítico, como para o
espectador, ou ainda para o produtor de um filme?
Eron Duarte Fagundes - Estabelecer parâmetros para
o filme ideal é um exercício meio autoritário.
Eu estou aberto para qualquer coisa e se eu examinar os
filmes que me apaixonaram nesses anos vou ver que são
filmes muito diferentes um dos outros. Então não
existe parâmetro para filme ideal no meu ponto de
vista. Por exemplo, a Doce Vida, do Federico Fellini, que é um
filme extremamente extrovertido e Gritos e Sussuros, do
Ingmar Bergman, que é um filme introvertido; um
filme experimental, bastante cerebral como é o Poder
dos Sentimentos, do Alexander Kluge e um filme do Carlos
Saura, o máximo da sensibilidade Elisa,
Vida Minha.
Além disso, eu gosto do cinema como um todo, eu
sou mais daquela frase do Vinícius de Morais quando
ele escrevia sobre cinema que qualquer filme por pior que
seja sempre vai me interessar, sempre vai haver alguma
coisa da magia do cinema. Vou fazer até uma provocação:
Casablanca não é o meu filme preferido, eu
respeito, é um clássico do cinema, acho agradável
de ver, mas jamais colocaria como o meu filme ideal. Acho
que a gente tem que estar aberto para receber até a
surpresa daquele filme que a gente pensaria que teria todos
os elementos para ser um mau filme.
Casa Nova - Se não tens um filme ideal, tens um
filme preferido, ou um grupo de filmes?
Eron - Eu acredito que todos nós temos, além
desses que eu citei os filmes do Robert Bresson, A
Grande Testemunha ("Au Hasard Balthazar", 1966 ); do
Fellini, Amarcord, Roma. Mas se a gente examinar esses
filmes vai ver que muitas vezes eles não tem muita
coisa em comum, a não ser o fato de serem filmes. É claro
que na minha maneira de ver o cinema algumas coisas tocam
mais.
Casa Nova - Eu parto do princípio do que o filme
está me prometendo e tento verificar ao longo do
filme se esse filme cumpriu a promessa inicial. Trata-se
da própria expectativa que o filme gera e ver se
ele cumpre e em que grau. E eu avalio nessa interrelação
como espectador informado se ele cumpriu a promessa que
fez. Goida, como nos velhos faroestes tu estás quieto
demais.
Goida - É que a gente está sob o impacto
de um filme muito bom, o Coração de Fogo.
Por quê esse filme é tão importante
para a nossa geração? Porque de certa maneira
recupera a idéia do herói positivo, que mesmo
sabendo que pode fracassar ele continua e continua, que
era muito do cinema norte-americano isso, e essa idéia
de certa maneira se incutiu a toda uma geração, é uma
geração que pode perder mas continua, uma
geração que luta muito pela cultura, onde
a gente sabe que tem que pagar para trabalhar. Então
esse tipo de filme como os uruguaios fizeram, o Diego Arsuaga
fez, ele realmente comove muito porque lembra esse tipo
de direção em que a gente tenta dar a vida
e que lamentavelmente o cinema está perdendo. Quando
nós passamos Rastros de Ódio, na Sociedade
Germânia, e eu pude rever o filme pensei que coisa
maravilhosa, conseguiu lidar com espaço, com personagens
que de certa maneira engrandeciam tanto a presença
da gente dentro do cinema, que sai emocionado, gratificado
e feliz por estar dentro do cinema. Eu sempre digo que
fui um péssimo aluno, não no sentido disciplinar,
mas porque não gostava do que aprendia no colégio,
eu gostava de ler e de ir ao cinema e graças à leitura
e ao cinema não virei um imbecil completo. O cinismo
tomou conta da humanidade em certos momentos e alguns filmes
nos devolvem essa pureza de tentar fazer as coisas, de
tentar ser correto, uma boa pessoa, mesmo que isso seja
difícil.
Às vezes a gente faz algumas injustiças
com o cinema ideal. Eu me lembro que no ano que passou
A Fonte da Donzela (Jungfrukällan,
Bergman, 1959), na mesma semana estava sendo exibido um
filme do John Ford
O Aventureiro do Pacífico, que era um filme meio
brincalhão com o John Wayne e Lee Marvin, mas tinha
um plus e eu me lembro que fiz uma injustiça tremenda
na época, afirmei no jornal que o filme do John
Wayne era muito mais cinema do que o do Bergman (Ingmar)
e me arrependo amargamente de ter dito isso, porque quando
eu revi o filme do Bergman, que filme limpo, bem feito,
poderoso. A gente muda com o tempo, quem diria há vinte
anos atrás que o cinema iraniano iria apontar caminhos
positivos e diferentes, a gente ia cair na risada. O que é o
neorealismo hoje? é o cinema iraniano, que cada
vez nos mostra que o cinema humano, da simplicidade, da
falta de recursos, filmado na rua, com gente do povo, não
tem nada a ver com a teoria política, esse cinema
ainda comove a humanidade. Depois de ver Coração
de Fogo tu diz: Goida tu vai ganhar mil dólares
para ver Matrix, eu digo não, não, acho que
vocês vão ter que pagar um milhão de
dólares, agora o Coração de Fogo eu
vou ver de novo, de graça. Lamentavelmente, o cinema
norte-americano está se auto-destruindo no apresentar
um trailer. Às vezes, o filme pode até ser
bom, mas os trailers são tão imbecis, tão
jogos eletrônicos, que tu diz não quero ver
esse filme, não tem nada, não tem gente,
sentimentos, valor, só artificialismo.
Eu acho muito ruim a gente ficar na nostalgia, tem alguns
filmes modernos de algumas cinematografias, que custam
chegar até nós, que nos comovem profundamente,
e nos dizem que o cinema ideal pode ser o cinema de aventura,
musical, a comédia, mas tem que ter valores. O cinema é regido
por três valores: o humano, a realização
formal e a capacidade de comunicação universal.
Casa Nova - Nós temos um momento, pelo menos desde
Carlota Joaquina, chamado de retomada do cinema brasileiro.
Na avaliação de vocês que caminho o
cinema brasileiro está tomando, me parece que pelo
menos em termos de público ele tem tido uma grande
resposta. A gente tem condições de conquistar
audiências fora do Brasil?
Eron - Eu acredito que o cinema brasileiro
está num
bom momento. Tem filmes pouco referidos mas que são
bons como Dois Córregos, do Reichenbach
(Carlos),
Cronicamente Inviável, do Bianchi
(Sergio), O
Príncipe,
do Georgetti (Ugo), que para mim são os três
melhores filmes brasileiros realizados nos últimos
anos. Só que eles não têm o público
de Carandiru ou Cidade
de Deus, que são bons.
Há uma multiplicidade de caminhos, a conquista de
mercado vai depender de uma série de fatores.
Goida - Graças a Deus nós
nunca vamos poder fazer filmes como os norte-americanos
fazem hoje em dia.
O Eron citou filmes maravilhosos que não tiveram
o público que tem esses blockbuster do cinema brasileiro
que curiosamente são bons. Carandiru e Cidade
de Deus são filmes que em termos de público
conseguiram um fenômeno muito curioso: levar para
o cinema o público classe C e classe A. Hoje o sentido
maior do cinema brasileiro está sendo alcançado,
uma coisa que não acontecia no passado, nos documentários
e nós tivemos, principalmente no ano passado, talvez
as maiores emoções do cinema brasileiro.
Janela da Alma, Edifício Master, esse ano nós
tivemos o Nelson Freire, que é maravilhoso, em Gramado
eu vi um documentário sobre Lúcio Costa,
excepcional. Nós vamos tentar passar no Clube o
Paulinho da Viola, que todo mundo diz que é muito
bom. Também O Prisioneiro da Grade de Ferro,
feito em Carandiru filmado pelos próprios prisioneiros.
Então, esse tipo de filme nos recupera o real sem
perder a capacidade de comunicação. A gente
nunca pode esquecer que nós fazemos filmes no terceiro
mundo e nunca temos recursos para fazer um filme como gostaríamos
de ser feito. Vai passar um filme chamado Celeste & Estrela,
da Betsy de Paula, que fala exatamente o que é fazer
cinema longa-metragem no Brasil.
Casa Nova - O nosso associado em geral vai pouco a salas
de cinema, ele assiste em vídeo ou DVD, ou na televisão,
eu queria que vocês falassem sobre o que é ver
cinema nas primeiras fileiras em uma sala de exibição.
Eron - Eu acho que o vídeo e o DVD funcionam como
complemento para a gente rever alguns filmes, os que não
chegam no cinema. Os filmes que foram feitos para a dimensão
da tela grande eles devem ser vistos ali, porque se perde
bastante qualidade no DVD e no vídeo.
Goida - Vou contar um episódio que me aconteceu
em Torres há uns cinco anos atrás. Eu fui
convidado para fazer uma palestra sobre cinema e quis exibir
um filme também. Eu disse vamos tentar convidar
bastante pessoas, principalmente de cursos de segundo grau,
pois o filme era Meu Adorável Professor, do Richard
Dreyffus. Antes de começar o filme fiz uma pequena
apresentação e perguntei quantas pessoas
já tinham visto filmes no cinema, devia ter mais
de 300 pessoas na sala, uns três ou quatro apontaram
o dedo. Quando começou o filme ainda tinha um certo
zunzun e dali um pouco foi um silêncio e o filme
era longo, quando terminou o filme eu perguntei ou vocês
gostaram tanto do filme, ou dormiram? e eles não,
não dormimos não, o filme é muito
bom. Isso dá a dimensão do que o cinema na
tela grande. A primeira vez que a pessoa vai ao cinema
sente uma emoção muito grande, faz parte
da vida da gente, e de uma maneira tão forte que
por mais que a televisão seja aperfeiçoada é em
casa, não se apagam as luzes, o telefone toca, o
cachorro grita, tem que atender alguma coisa. O cinema
intimiza a pessoa, mesmo tu estando com a presença
física da pessoa do teu lado você está isolado,
claro tem que ser um filme bom, não pode ser um
Matrix.
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