Violência em Chinatown
Recontar a história da formação da América, é uma ambição que perpassa alguns filmes do diretor Michael Cimino, como em O Ano do Dragão
O recente falecimento de Michael Cimino, além de lamentável em si, atraiu a atenção para a filmografia do realizador que andava com prestígio em baixa na indústria. Ainda que tenha sido homenageado pelo Festival de Veneza em 2012, a verdade é que Cimino rumava para uma forçada aposentadoria por não conseguir desenvolver novos projetos pessoais. Agora, com a filmografia definitivamente fechada, seus trabalhos voltam a ser reavaliados e relançados, atestando o valor de uma obra que estava à espera de um novo olhar.
Ao falar-se de Michael Cimino as primeiras lembranças que vem à mente são justamente o seu ápice, o drama de guerra vencedor do Oscar, “O Franco Atirador” (1978), e o equivocadamente alegado maior fracasso (apenas comercial), o portentoso western épico “O Portal do Paraíso” (1980). As duas produções surgiram em sequência, fato que apenas confirma a oscilação na carreira do realizador. Considerando este fato, é perfeitamente compreensível a expectativa que rondava o filme seguinte, “O Ano do Dragão”, lançado após Cimino lamber por cinco anos as feridas deixadas pela dolorosa experiência de “O Portal do Paraíso”.
Recontar, ainda que alegoricamente, a história da formação da América, é uma ambição que perpassa alguns filmes do diretor. A conquista de territórios, os primórdios do capitalismo e a integração dos imigrantes europeus são pano de fundo em “O Portal do Paraíso”. Os fantasmas do conflito do Vietnã que assombram a sociedade norte-americana estão em “O Franco Atirador”. O submundo e a corrupção das Máfias que construíram fortunas e moldaram o poder dos EUA aparecem em “O Ano do Dragão”, e também em “O Siciliano” (1987), ainda que este transcorra na Itália.
Baseando em um livro de Robert Daley (que também escreveu o livro que deu origem ao filme “O Príncipe de Cidade”, de Sidney Lumet), “O Ano do Dragão” (Year of the Dragon) tem roteiro do próprio Cimino em parceria com Oliver Stone. O filme se passa na Chinatown de Nova Iorque, berço da máfia chinesa que opera nos EUA comandando o tráfico de ópio, matéria prima da heroína. Para expandir seus negócios os chineses entram em conflito com os italianos (carcamanos). A disputa por territórios deflagra uma guerra, acaba com o equilíbrio de forças e rompe o acordo de paz, coniventemente aceito pelas corruptas forças policiais da região.
É neste cenário que entra em cena o capitão da polícia Stanley White (Mickey Rourke) transferido do Brooklyn para Chinatown com o encargo de cuidar da crescente violência no bairro. O policial avança o sinal e vai fundo na missão. Não concordando com o faz de conta da polícia, que prefere deixar tudo como está para ver como fica, White decide, contra o desejo de seus superiores, fazer uma guerra pessoal assumindo o papel de justiceiro incorruptível. Nesta obsessão o policial compra briga com o Sistema, destrói seu casamento, acaba com suas poucas amizades e manipula a imprensa, através da sedução de uma repórter de TV.
Impulsivo, arrogante e extremamente vaidoso, o personagem Stanley White é de origem polonesa, o que o coloca também como um imigrante na América, assim como os chineses e os italianos aos quais persegue em sua saga punitiva. Há um forte componente de discriminação racial nas atitudes do policial, um estigma, aliás, que sempre perseguiu o próprio diretor Michael Cimino, particularmente após “O Franco Atirador”, onde tratava os asiáticos de forma maniqueísta.
Os desempenhos em “O Ano do Dragão” são pontos fracos no resultado final. Mickey Rourke está por demais caricato e constantemente beira o “overacting”. John Lone não está particularmente bem com o líder da máfia chinesa. Mas o desastre maior está no papel da repórter de TV Tracy Tzu, fundamental para a narrativa. Ariene Koizumi, por vezes creditada apenas como Ariane, atriz norte-americana de origem japonesa, não dá conta da complexidade da personagem e coloca a perder todas as nuances da relação sadomasoquista que desenvolve com Stanley White.
Tenso e explosivo como outros trabalhos do realizador, em “O Ano do Dragão” Michael Cimino não se furta e até se regozija com a exposição explícita de sangue e as consequências das balas em corpos e crânios. Uma destas explosões de violência é a sequência do tiroteio na casa noturna, que revela uma ótima decupagem e montagem dinâmica. Sequência, aliás, que nos remete a outra, muito semelhante, em “Scarface”, dirigido por Brian De Palma três anos antes. Coincidência? Plágio “involuntário”? Quem sabe. Mas vale lembrar que o mesmo Oliver Stone foi roteirista nos dois filmes
Sobre o Colunista:
Jorge Ghiorzi
Bacharel em Jornalismo e pós-graduado em Marketing. Redator, roteirista e produtor de eventos culturais. Editor da publicação Cine Guia Preview (1995 2000) e do newsletter Cine Guia Preview (2009 2011). Produtor do Festival de Cinema de Gramado por 17 anos. Colaborou com críticas de cinema para jornais do interior do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Já publicou textos de cinema em diversos blogs e sites, como Papo de Cinema, Facool e Movi+, e também para a revista Voto. Criou a produtora cultural Cine UM, em 2009, que desenvolve uma programação de cursos livres de cinema em Porto Alegre e no interior do estado. Contato: jghiorzi@gmail.com