O Tempo das Tribos

A francesa Elizabeth Roudinesco, cuja fama se deve a seus estudos lacanianos, insere-se novamente no centro dum debate cultural contemporaneo

03/05/2022 14:11 Por Eron Duarte Fagundes
O Tempo das Tribos

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

A francesa Elizabeth Roudinesco, cuja fama se deve a seus estudos lacanianos, insere-se novamente no centro dum debate cultural contemporâneo, certamente mais terra-a-terra que penetrar no universo muitas vezes obscuro de Jacques Lacan, ao publicar seu novo livro, O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias (Soi-même comme un roi; essai sur les dérives identitaires; 2021). O assunto de que trata é algo que palpita nos nossos dias: em nome originalmente de causas justas (a crítica dum instituto historicamente criminoso como a escravização de populações negras), podem os descendentes dos atingidos pôr-se em guetos em que se isolam dos demais (a identidade negra como partindo da premissa de que todo branco é racista e escravista, mesmo quando for, racionalmente, antirracista e abolicionista?). O alvo de Roudinesco em suas divagações: a validade, ou os perigos, das derivas identitárias. A ensaísta tem aquele brilho e agudez franceses para expor seus pontos-de-vista e suas dúvidas. No universo perplexo dos dias atuais, Roudinesco, ainda que exponha seus raciocínios às vezes com aspectos da tradição moralista francesa, esforça-se por não fechar-se no beco mental como se dissesse a verdade final. É esta abertura  que interessa em O eu soberano: a natureza interrogativa do texto, a essência mais que socrática da argumentação e uma investigação intelectual que, para além de se concordar ou não com um ponto-de-vista às vezes enviesado, chama o leitor ao diálogo. Uma tentativa de atravessar as fronteiras do tribalismo de ideias ou interesses.

“Uma vez solidamente estabelecidos, os conceitos e as palavras transformam-se num catecismo que, no momento desejado, acaba de justificar passagens ao ato ou intervenções na realidade.” Roudinesco é uma leitora ávida. Leu os clássicos franceses, de Gustave Flaubert a Jean-Paul Sartre, mas também soube apreciar uma obra-prima como o romance Texaco (1992), do martinicano Patrick Chamoiseau, e revela-se admiradora dum clássico brasileiro de ciências sociais: “Em 1933 o grande sociólogo Gilberto Freyre analisou muito bem esse fenômeno numa obra célebre, Casa grande & Senzala, demonstrando que o Brasil oferecia duas faces antagônicas sob os traços duma organização rígida herdada da colonização.” Lendo os livros antecessores, Roudinesco lê o mundo em que vive: este seu dado central como pensadora.

Ela adverte, de cara: “Em cada etapa deste ensaio, tratarei de analisar a abundância de neologismos que acompanham o ‘falar obscuro’ de todas essas derivas.” Antes, ela já identificava, às claras, o holofote de suas ideias: “Depois de vinte anos, os movimentos de emancipação parecem ter mudado de direção. Já não se perguntam como transformar o mundo para que ele seja melhor. Mas dedicam-se a proteger as populações daquilo que as ameaça: desigualdades crescentes, invisibilidade social, miséria moral.” Mas sua clareza é depois feita de dúvidas, perguntas: “Devemos condenar os descendentes dos colonizadores? Sou culpada pelos crimes cometidos na metade do século XIX, na Terra do Fogo, pelo meu ancestral distante Julius Popper, judeu romeno responsável pelo massacre dos indígenas selk’mam?” Pode-se ver nestas perguntas da francesa uma indução à resposta negativa. Mas no contraponto a interrogação é interrogação: dúvida, mesmo que inclinada, moralmente, a um dos lados, o seu lado. Em seu livro Roudinesco parte falando dos identidarismos à esquerda mas depois chicoteia com muito mais convicção os identidarismos à direita: este dado central é, o mais das vezes, passado à margem por uma análise apressada do ensaio.

Numa entrevista a Juremir Machado da Silva na década de 90 (publicada no livro Visões de uma certa Europa, 1998), Roudinesco se queixava: “Ninguém se surpreende com a vida de Jean Genet. Tolera-se aos artistas o que não é permitido aos pensadores. Explicar o pensamento de Foucault pelo sadomasoquismo é uma imbecilidade; negar o fato, um absurdo.” Tirante o que há de moralismo à Roudinesco nestas observações, pode-se observar com generosidade esta autorreflexão dela usando os paradigmas Genet e Foucault. O eu soberano pode ser analisado em parte pelas próprias circunstâncias da natureza social, histórica de Elizabeth Roudinesco, mas a essência está em outra parte: sua capacidade argumentativa para além destas circunstâncias. Sua citação lá pelas tantas a Jean-Luc Godard a partir dos atentados no Charlie Hebdo dá a medida das profundas sutilezas de seu pensamento: “Gostaria de opor a essas afirmações irresponsáveis a intervenção fulgurante de Jean-Luc Godard. ‘Todo mundo diz, como um bando de imbecis, ‘Je suis Charlie’, eu prefiro dizer 'Je suis Charlie’, do verbo suivre (seguir), e eu os sigo há quarenta anos.’ O cineasta era, de fato, grande leitor do jornal, e em 2012 o desenhista Luz caricaturou-o filmando Maomé com a bunda de fora, dizendo a fala de Brigitte Bardot a Michel Piccoli em O desprezo: ‘E a minha bunda, você gosta da minha bunda?’.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha
Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro