Guiomar, Germe de Capitu

O tempo de A mão e a Luva é aquele em que no Brasil ainda se escrevia literatura romântica.

12/09/2014 10:54 Por Eron Duarte Fagundes
Guiomar, Germe de Capitu

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O problema fundamental dos primeiros romances de Machado de Assis são os romances que ele publicou a partir de 1881. Se o escritor tivesse morrido antes dos quarenta anos, sua grandeza não existiria, mas sua importância para a evolução de nossa literatura teria de ser analisada. Os romances iniciais do autor são peremptoriamente jogados na lixeira machadiana, porque não estão à altura do grande mito; mas seriam estes romances piores do que muita obra que em nossos dias é incensada pela mídia ligeira dos jornais? Demais, creio que a leitura dos livros da fase inicial de Machado permite observar como o escritor foi fazendo e refazendo seus processos de construção artística até chegar à depuração.

Em A mão e a luva (1874), o segundo romance de Machado de Assis, o narrador se detém na edificação duma figura feminina incrustada na sociedade escravocrata brasileira do século XIX: Guiomar “tivera humilde nascimento” e, órfã muito cedo, foi criada pela madrinha, uma burguesa que a protegeu por toda a vida, especialmente depois que a filha adolescente desta madrinha, com quem Guiomar convivia, morreu. Na advertência da edição de 1907, Machado escreve sobre o livro: “Se este (o autor) não lhe daria agora a mesma feição, é certo que lha deu outrora e, ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa.” Como Machado de Assis, já velho e cético, depois de tantas narrativas cruéis, releria mesmo suas ingenuidades da juventude? Numa advertência sobre a reedição de Helena (1876), o mesmo Machado adverte: “Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.”

O tempo de A mão e a luva é aquele em que no Brasil ainda se escrevia literatura romântica. Pontificava o cearense José de Alencar, com a luxúria do verbo e da sintaxe. É bem verdade que Machado de Assis utiliza amiúde certas ideias romantizadas dos sentimentos humanos e aqui e ali sua metáfora da frase descamba para o lugar-comum dos melodramas de costumes da época. Mas a estrutura dum livro como A mão e a luva difere muito dos tons derramados de Alencar ou do sentimentalismo primário de Joaquim Manoel de Macedo. Há um certo cerebralismo ainda mal armado e que Machado de Assis transformaria num ente revolucionário a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). E os períodos da frase são contidos, executados com uma precisão vocabular que escapava à índole arrebatada de Alencar, por exemplo. Não se quer dizer com isto que A mão e a luva é um bom romance por qualquer ângulo que o olhemos; é bom em algumas perspectivas e em outras bastante fraco.

Guiomar é uma pré-Capitu, é uma Capitu antes da revolução estilística e ideológica. Como Capitu, Guiomar é uma humilde de nascimento que ambiciona (“Não há dúvida; é ambiciosa”) ascender socialmente pelo casamento: enquanto a Capitu se apresenta somente um pretendente evidente, Bentinho, na vida de Guiomar se desenrolam três papéis masculinos, o sentimentalóide Estevão (um pré-Rubião sem os sarcasmos do narrador), o apático primo Jorge e o preciso, contido mas tão ambicioso quanto Guiomar Luís Alves, com quem a moça vem a casar como a mão com a luva, duas faces da mesma ambição. Escreve o narrador de A mão e a luva pelo pensamento imaturo de Estêvão: “A Guiomar que ele conhecera e amara era o embrião da Guiomar de hoje, o esboço do painel agora perfeito; faltava-lhe outrora o colorido, mas já se lhe viam as tintas do desenho.” É mais ou menos o que faz o narrador de Dom Casmurro (1900) no final do livro: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente.” O que falta ao narrador de A mão e a luva é aquilo que o narrador de Dom Casmurro esbanja: manejar a dúvida; Guiomar é uma personagem esquemática, que se vai definindo facilmente em algumas frases-padrão, enquanto Capitu, psicologicamente mais desenvolvida pelo narrador, se escapole o tempo inteiro das abrangências do leitor.

O excessivo cerebralismo de A mão e a luva é tanto sua virtude para fugir àquilo que era padrão em sua época quanto seus limites de explicar todas as coisas pelo raciocínio exato da natureza realista de Machado já em suas obras iniciais; Machado de Assis ainda não topara uma forma de se aproximar das questões sentimentais que não fosse ou a paixão melodramática ou um cálculo de naturalismo matemático para a ficção: o grau de sutileza e profundidade ainda estava por vir.

Um exemplo bastante claro desta dialética entre um Machado conformado com a convivência com os clichês românticos e outro que espertamente se esforçava por sair pela tangente é um parágrafo em que o narrador mergulha no espírito de apaixonado romântico da personagem de Estêvão: “Não evocava só, criava também, pintava com a imaginação a felicidade que lhe poderia dar a moça, se entre todos os homens o escolhera, se eles dois vinculassem os seus destinos.” Sentindo o tom puxando para a excessiva idealização, o que mesmo aí, em seus começos, já não era do agrado do escritor meticuloso e observador Machado de Assis, este insere um desvio do narrador na frase que fecha o parágrafo: “Não falo eu, leitor, transcrevo apenas e fielmente as imaginações do namorado; fixo nesta folha de papel os voos que ele abria por esse espaço, única ventura que lhe era permitida.” Mas enquanto vai usando o discurso indireto para dar vida aos calores românticos de Estêvão, o narrador de Machado se confunde com estes sentimentalismos, pois lhe falta o distanciamento irônico aperfeiçoado em Quincas Borba(1891), por exemplo; o paradoxo da saída final do parágrafo é uma das muitas revelações dos desequilíbrios deste romance curioso que é A mão e a luva.

Conciliador em seu final, com as facilidades do casamento entre Guiomar (da classe baixa) e Luís Alves (o burguês que necessita desta aliança, mas sem aquela visão idealizada da relação casamento e ascensão social de Senhora (1875), de Alencar, A mão e a luva não deixa de ter este exercício de crônica de época que deve ser estudado em suas contradições e indecisões para que se avaliem os aperfeiçoamentos de verdade literária que Machado de Assis foi elaborando ao longo dos anos e não assim da noite para o dia, como geralmente se ouve ao dividi-lo artificiosamente em dois. Como anota o próprio Machado, tudo serve a definir a mesma pessoa.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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