O Portugal de Eça de Queiroz
Os maias (1888) é um monumento da língua portuguesa
Os maias (1888) é um monumento da língua portuguesa. Ele acompanha o leitor de nossa língua desde os anos iniciais de maneira irreversível. Irregular em sua composição e às vezes relaxado nas facilidades estruturais e vocabulares de algumas frases, com longas citações em francês e uma colagem do próprio português de Eça a alguns galicismos sintáticos e léxicos (o autor chega a usar o adjetivo “cultivado” por “culto”, como em francês, “cultivé”), o romance tem o alto poder de descrever uma classe social e um país, uma certa classe aristocrática lusitana que, vazia e perdida, atrai a tragédia da nação dentro de suas próprias tragédias pessoais. Eça é um mestre do adjetivo, não por sua precisão, mas por suas imprecisões evocativas: não queiramos imitá-lo, ele é único, suas imitações em pleno século XXI (o século do telegráfico internáutico —com certeza Eça, que viveu em Paris, iria buscar uma expressão francesa para o fenômeno) vão exalar anacronismo e mofo. É tudo o que Eça critica, nos ambientes que retrata, ao longo desta sua obra-prima: os mofos anacrônicos duma nação. Seria curioso observar que seu texto pudesse gerar os filhotes que ele próprio desbaratava com ironia fina mas feroz.
O início de Os maias é um desbunde balazaqueano (outro dado: Eça está mais para Balzac, o mestre do universo romancesco desarticulado, do que para Flaubert, o homem de minúcias verbais, embora certas coisas de viés narrativo flaubertiano lhe caiam no colo, como escritor do século XIX). Ao reler as páginas iniciais do romance, parece que estou a ouvir a voz do barítono Jorge Vaz Carvalho, a quem foi dada a palavra de Eça como um narrador intersticial do belo filme, de 2014, que o português João Botelho extraiu do original literário. “A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o Bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, ..., tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica.” Há também, nesta peregrinação pela vida duma família através do tempo, algo de pré-proustiano na narrativa, sem aquele “eu” inovador de Marcel Proust, claro. Relendo Eça, somos instados a aludir à experiência do velho crítico gaúcho Augusto Meyer: “De cada vez que voltamos ao Eça, reanima-se em nós o antigo leitor ingênuo, que andava esquecido de seus primeiros amores, perdido no labirinto das leituras complicadas, em longes terras.” O velho leitor, ingênuo, fascinado, depara com a forma como Eça põe em palavras a indolência lusa: “Do Rocio, o ruído das carroças, os gritos errantes dos pregões, o rolar dos americanos, subiam, numa vibração mais clara, por aquele ar fino de novembro; uma luz macia, escorregando docemente do azul-ferrete, vinha dourar as fachadas enxovalhadas, as copas mesquinhas das árvores do município, a gente vadiando pelos bancos; e essa sussurração lenta da cidade preguiçosa, esse ar aveludado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco naquele abafado gabinete e resvalando pelos veludos pesados, pelo verniz dos móveis, envolver Carlos numa indolência e numa dormência.” A gente meio que se perde neste arrastar de vocábulos e nesta sintaxe alongada: a locução verbal “pareciam ir” se vai desviando pelos caminhos da frase e tardamos um pouco, no final, a perceber que “envolver Carlos numa indolência e numa dormência” vai complementar este “parecer” que preenche o espírito do narrador. E também: ao longo das orações, é quase como se Eça pusesse o leitor numa cadeira de balanço em palavras: estamos em conexão com o interior da personagem, Carlos da Maia, o português indolente —entendemos então a crítica de Eça ao espírito de uma nação.
A tragédia familiar marca a narrativa desde seus princípios. Pedro da Maia é corneado pela mulher, que foge com outro homem levando-lhe a filha; o filho de Pedro, Carlos, fica, a mulher não o leva; Pedro, desesperado, acaba suicidando-se; Carlos cresce, criado pelo avô, Afonso da Maia; quase nada se sabe do paradeiro da mãe de Carlos, senão que fora ter a regiões de prostíbulo em Paris e a menina, irmã de Carlos, teria morrido. Carlos, depois dum flerte com uma madame Gouvarinho, casada com outro, conhece a mulher de sua vida, Maria Eduarda. Amam-se, unem-se. Nova tragédia: surge a revelação de que são irmãos, a menina filha de Pedro da Maia não morrera como supuseram. No incesto Eça parece simbolizar as próprias mazelas da nação portuguesa. Mas o rio segue seu rumo: Carlos retoma suas viagens, Maria parte e tempos depois aparece a notícia de que está casada. Como afirmou o cineasta João Botelho, apresentando seu filme no Festival do Rio 2014, no ambiente eciano do Instituto Moreira Salles, que fica à beira duma universidade, a PUC do Rio, Carlos não se mata nem Maria vai para o convento, como mandariam as convenções românticas da literatura que precedeu a entrada em cena de escritores como Eça no século XIX. E lá pelo final, o protagonista, reencontrando o solar do Ramalhete (“simplesmente o Ramalhete”), explana uma percepção temporal que tempos depois Proust desenvolveria mais longamente:
“—É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!”
João da Ega, o amigo de Carlos e que é uma espécie de porta-voz torto de Eça dentro do romance, estabelece rápidas lucubrações. Eça materializa estas lucubrações através dum preciso e breve (coisa rara em seu narrador, por via de regra prolixo e derramado) discurso indireto livre. “Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida —a paixão.” Nota-se aí, na utilização do elemento partitivo (vivera daquilo, vivera uma parte daquilo, pois o todo é inalcançável; outra questão francesa, em cuja língua o partitivo tem vida mais larga que em português?), a profundidade nostálgica atingida exemplarmente pela oração de Eça, algo que enlaça o leitor, como em Proust.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br