A Autocomiseração em Cinema

No filme Mataram Meu Irmão (2013) o cineasta Cristiano Burlan se coloca dentro da periferia em que se formou

28/08/2015 13:47 Por Eron Duarte Fagundes
A Autocomiseração em Cinema

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Cristiano Burlan foi um menino que se criou na perigosa periferia de São Paulo, mas a ultrapassou ao tornar-se um diretor de cinema, um apropriado intelectual da imagem. Com seu documentário autorreferente Mataram meu irmão (2013) o cineasta se põe dentro da periferia em que se formou, nota-se que seu cinema haure deste cenário a linguagem que se esfumaça na tela, trazendo todavia para estes ambientes em que a linguagem se vai formando a duras penas em termos fílmicos a experiência de alguém que se evolou das circunstâncias deste meio, que é único (embora semelhante a outros meios periféricos por aí afora) e produz uma experiência artística pensada e também única. Assim, Mataram meu irmão é, num só gesto, a exposição duma ferida pessoal (a autocomiseração é aqui e ali inevitável: não se perde um irmão violentamente, sem consequências íntimas) e uma visão de aguda sensibilidade cinematográfica dos indivíduos à margem nas grandes cidades.

Houve quem pensasse em Elena (2012), onde também uma diretora de cinema, Petra Costa, usava a câmara e a montagem para investigar de sua irmã, uma suicida. Mas Elena tem o olhar do exílio. Mataram meu irmão se põe dentro do universo de periferia que o originou: sua espontaneidade de movimentos e seu lado adrede tosco se materializam diferentemente do que se vê em Elena. Também se repete que o processo de narrar em primeira pessoa (o cineasta fala de si mesmo ou de sua família) está sendo reiterativo no cinema brasileiro atual. Ocorre que Mataram meu irmão, ao aprofundar sua linguagem na realidade da qual ela deve ser espelho, recria tudo isto, estabelecendo um outro processo de primeira pessoa, discutindo mesmo as inseguranças das pessoas em cena e da própria câmara, a falta de jeito de indivíduos comuns diante do aparato do cinema (ainda que barato) e a própria falta de jeito deste aparato do cinema diante de indivíduos que nada têm de cinematográficos (e como forma de vencer esta falta de jeito propõe uma desglamurização visceral do processo de filmar).

Mataram meu irmão começa sobre uma imagem escura em que o diretor fala com uma agente de cemitério para reaver os restos mortais  de seu irmão, morto em 2001 por possíveis desavenças com traficantes nos arredores de São Paulo, a metrópole brasileira por excelência, onde nossas luzes e escuridões se resumem. Neste plano inicial só se ouvem as vozes do diretor e da agente ao telefone. As imagens, também fixas, que encerram o filme são fotografias do inquérito em que se vê sempre o corpo do irmão morto cheio de furos de projetis. A primeira imagem em movimento conversa com uma tia que depõe sobre o falecido. A última imagem em movimento mostra o momento em que o diretor, comovido, é abraçado por sua sobrinha adolescente, filha do irmão morto. A sequência mais notável parece ser de um amigo da família que, sentado à beira da praia, tomando cerveja, tergiversa longa e perdidamente sobre o morto e as relações daquela morte com a vida na periferia; esta criatura parece um pouco, retoricamente, com o discurso do cineasta Glauber Rocha, quando ia fazendo observações a esmo, desorganizadas e inorgânicas em si mesmas, mas que no fim, em seu conjunto, adquiriam um significado inesperado e orgânico.

Pode haver quem se incomode com a comiseração final de Cristiano, sendo abraçado por seus sobrinhos, que se afastam da câmara 1 para se posicionarem na câmara 2, que capta o abraço. Ou até talvez haja os olhos que não tolerem a forma buscadamente fosca de filmar do realizador, forma que emula um filme que, para ser sincero, não quer sair da periferia que o gerou. Nada disto vai importar a quem se interessa pelo grau de sua intensidade cinematográfica.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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