O Suco Coobado
O romancista frances Joris-Karl Huysmans voltou a ordem do dia
O romancista francês Joris-Karl Huysmans voltou à ordem do dia por aqui depois que um francês atual, Michel Houellebecq, o fez uma espécie de personagem de tese em seu romance Submissão (2015). Huysmans foi um naturalista que lá pelas tantas rompeu com o naturalismo. Criou o que se veio a chamar decadentismo: um olhar literário para um mundo em decadência. Um olhar na queda. O livro essencial de seu rompimento foi Às avessas (À rebours; 1884), que mereceu alguns apartes paternais de seu mestre Émile Zola. Huysmans é naturalmente menos referido hoje que Zola ou Gustave Flaubert, mas sua literatura é certamente mais exigente; as tramas romanescas não convencem facilmente a Huysmans, daí ele faz constantes divagações pelo ato de construir o romance, como eliminar as excrescências romanescas e ficar somente em algumas peças essenciais que edificariam somente o que importa. O romance-ensaio do século XX o aplaudiria. André Gide ficaria fascinado com esta ideia de pureza da obra de arte por uma linguagem que seria somente sua.
Des Esseintes, o cérebro que reflete a narrativa em Às avessas, é um caleidoscópio de pensar para todos os lados do humano. Um esteta dos perfumes, dos livros, até mesmo do sexo. Mas o centro de Às avessas é o momento em que o narrador põe o romance no espelho. “Bien souvent, des Esseintes avait medité sur cet inquiétant problème, écrire un roman concentré en quelques phrases qui contiendraient le suc cohobé des centaines de pages toujours employées à établir le milieu, à dessiner les caractères, à entasser à l’appui les observations et les menus faits.” (“Muito frequentemente, des Esseintes meditara sobre este perturbador problema, escrever um romance concentrado em algumas frases que conteriam o suco coobado de centenas de páginas sempre empregadas para estabelecer o meio, desenhar caracteres, amontoar as observações e os fatos minúsculos de apoio.” Eis o cerne: suco coobado. Espremer a fruta, deixar o suco. Huysmans vai pela raridade: da sintaxe e do vocabulário e também das ideias. Coobar, quem poderia saber isto? O narrador de Huysmans vai terminar seu périplo de nobre da linguagem, no fim do livro, desesperançado, um pouco nervoso: o firmamento que ele entrevê já não é iluminado pelos fachos que se consolam da velha esperança. Vinte anos depois da publicação do livro, Huysmans escreveu um prefácio da explicações tardias; e desencanta-se com a necessidade duma releitura, exaspera-se porque os livros não são como vinhos, e se preocupa mais, nesta releitura, com as metamorfoses religiosas que com as questões estéticas. Vinte anos é pouco, mas cento e trinta e um anos depois Às avessas vem a ser o fanal que alumia os elementos da Submissão de Houellebecq.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br