Um Contador da Histria
O escritor gacho Alcy Cheuiche mostra sua grande faceta de contador da Histria em O Mestio de So Borja (1980)
O escritor gaúcho Alcy Cheuiche mostra sua grande faceta de contador da História em O mestiço de São Borja (1980). A ação narrativa começa na primavera de 1930, primórdios da Era Vargas, cruza o outono de 1941, o inverno de 1945, o verão de 1950, o inverno de 1954, outro inverno em 1959, mais outro em 1961, um outono em 1964, a primavera de 1968, um novo outono em 1974, uma primavera em 1980, um dezembro de 1980, onde o livro se fecha e vem a ser publicado quase no momento mesmo em que seu último fato narrativo se dá. É um painel histórico do Brasil, como observava o crítico Antonio Hohfeldt no prefácio da primeira edição; mas, também observa o mesmo crítico, apresenta uma síntese mais contemporânea do conceito de painel, Hohfeldt cita “lá se vão os tempos dos romances-rio, em que, através de gerações inteiras e muitos volumes, um Marcel Proust ou um Roger Martin du Gard, ou ainda um Balzac, acompanhavam a evolução de famílias inteiras”, eu poderia citar ainda o alemão Thomas Mann ou algo mais próximo de Cheuiche, o gaúcho Erico Verissimo, em cujas leituras certamente o autor de O mestiço de São Borja bebeu e vemos que algumas coisas ecoam ao longo de seu romance histórico, como as origens étnicas do protagonista, o mestiço adotado por brancos Oswaldo, lembrando um pouco a percepção genealógica do gaúcho por Erico em O tempo e o vento (1949-1961). Mas Cheiuche atualiza a linguagem do romance histórico à gaúcha, despojando-a de certas simplificações líricas e buscando evocações mais rigorosas e precisas em termos de sintaxe e vocabulário, mais de acordo com os anos 80 em que suas linhas foram escritas. Nada contra Erico, um belo clássico e uma ascendência inevitável sobre nossas cabeças e nossos andares, mas tudo a favor de Cheuiche, um escritor de primeira de sua época.
Começa assim, na primavera de 1930. “Era um corvo muito velho. Há meses a fome o afastara do bando. Voava em plena envergadura de suas asas contra o céu deserto de nuvens. Um céu de primavera. Época ruim para quem se alimenta da morte. Na pastagem verde, por onde passeava sua sombra, nenhum sinal de presa fácil. Voava em amplos círculos, aproveitando as correntes de ar para economizar forças. Visto de baixo, parecia uma pandorga desgarrada no azul.” Numa comparação talvez meio torta, mas que serve para algumas delimitações, este texto de abertura do romance está mais para Vidas secas (1938), do alagoano Graciliano Ramos, do que para O tempo e o vento. A metáfora visual do corvo como uma pandorga negra perdida no azul recolhe neste leitor certas imagens do início do romance (ou novela) de Graciliano, o voo negro dos urubus na caatinga nordestina, aqueles juazeiros que se aproximavam, recuavam, sumiam-se conforme o andar da família que encena as vidas secas. Imagens da literatura, só isto, mas que em algum momento já experimentamos na vida: uma igrejinha que aparece e desaparece à medida que andamos pela estradinha, um bicho que, visto de longe, sob o céu parece um ente inanimado.
Voltemos. O mestiço de São Borja trata basicamente dos índios e da ecologia. E no conjunto da obra de Cheuiche apresenta sua coerência férrea, como se percebe de seu mais recente romance, O farol da solidão (2015), que apresenta uma outra personagem de raça brasileira massacrada, o negro Carlos Santos, deputado. Mas não se pode deixar de registrar que O mestiço de São Borja passa por aquele que talvez tenha sido o instante crucial das agonias brasileiras no século XX, o suicídio de Getúlio Vargas no inverno de 1954. E inevitavelmente o narrador se vale da carta-testamento como elemento dramático. Vinte e quatro depois do romance de Cheuiche, outro escritor gaúcho, Juremir Machado da Silva, em outro bom romance histórico, Getúlio (2004), voltaria a usar o texto da carta de Getúlio como impulso de perturbação narrativa, pois no inverno de 1954 as orações finais do presidente suicida percorreram as ondas das rádios brasileiras desde a emissão inicial da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
Voltemos ainda. Oswaldo, o protagonista de O mestiço de São Borja, morre com sua esposa francesa Françoise num acidente aviatório, na primavera de 1980, e em dezembro de 1980 o pai adotivo de Oswaldo, Otto, lê as últimas palavras escritas por seu filho, uma carta-testamento involuntária, em que, entre outras coisas, diz que pertence a uma parcela da espécie humana que ainda crê no futuro. Apesar dos percalços —ou criados pela própria humanidade e seus desacertos ou pelo destino aparentemente inescrutável, como um acidente de avião—, este texto final impõe O mestiço de São Borja como um ato de fé no futuro do humano. Diz o ancião Otto, na solenidade universitária: “Tenho ainda na retina a imagem de seu primeiro dia. E creio que Deus me manteve vivo até hoje para que eu cumprisse minha missão até o fim. Para que eu recebesse também nos braços a homenagem consagradora de sua vida. E a colocasse aos pés de seus despojos, cinquenta anos depois.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br