O Estado do Cinema

O alemão Wim Wenders mostra um estado lamentável do diretor de cinema como artista na indústria do cinema, ao filmar O Estado das Coisas

09/11/2017 08:31 Por Eron Duarte Fagundes
O Estado do Cinema

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O alemão Wim Wenders mostra um estado lamentável do diretor de cinema como artista na indústria do cinema, ao filmar O estado das coisas (Der stand der linge; 1982); sintomaticamente, na sequência que encerra o filme, o diretor de cinema vivido por Patrick Bauchau maneja uma câmara portátil como se fosse uma arma para o cenário e neste cenário ouvimos o estampido de um tiro e rapidamente imagens do corpo atingido e cambaleante do produtor interpretado por Allen Goorwitz. É O estado das coisas um filme umbilical da filmografia de Wenders, porque reflete a experiência fática de seu trabalho anterior, uma acidentada produção americana rodada para o produtor Francis Ford Coppola, Hammet (1978-1982). Nesta cena final de O estado das coisas, simbólica mas extremamente forte no realismo de sua encenação, é como se Wenders executasse um desejo: matar Coppola, matar a interferência americana, matar o cinema do papai, cortar as raízes ianques trazidas pelo menino Wenders, libertar-se da sombra da indústria e fazer a câmara explodir para todos os lados como uma metralhadora.

O estado das coisas é um filme que trata do cinema e de suas impossibilidades. Se em Oito e meio (1963), do italiano Federico Fellini, era o impasse criativo do cineasta Guido Anselmi que tornava inúteis os esforços de ambientação (os ambientes são no final do filme destruídos porque o filme dentro do filme não se realizará), e em A noite americana (1973), do francês François Truffaut, a doçura de direção amenizava as asperezas dos relacionamentos na equipe de filmagem, em Wenders é a característica industrial do cinema que vai destruir os sonhos artísticos do cinema: faltam negativos para continuar as filmagens e o produtor vai a Los Angeles falar com os financiadores; mas o produtor tarda a voltar e por fim está desaparecido. Como em certos filmes do italiano Michelangelo Antonioni, o desaparecimento duma personagem básica da narrativa confere uma certa tensão metafísica à atmosfera; como Antonioni, Wenders sabe utilizar com mestria este recurso estético, ora imitando um policial filosófico, ora enveredando para um real despojado que parecia pertencer a uma fase de seu cinema encerrada com No decurso do tempo (1976). Mas isto de encerramento de um ciclo fílmico é sempre instável e mutável em Wenders. Namorando a América, ele a critica em asperezas formais e mergulhos de roteiro em O estado das coisas; mas em seu filme posterior, Paris, Texas (1984), o realizador introduz em sua linguagem cinematográfica as tensões bastante complicadas entre arte e indústria no cinema. Vindo mais adiante, num filme do século XXI, Estrela solitária (2005), é um ator que desaparece do set de filmagem, o que confere ao elemento (desaparecer) muito mais uma intriga industrial que os abismos artísticos explorados em O estado das coisas. Em todas as diferenças está sempre a constância das invenções de Wenders, únicas no panorama da sétima arte contemporânea.

O diálogo final entre o diretor e o produtor (finalmente este vai reaparecer encontrado pelo diretor, numa van) é um resumo dos conflitos de ideologia cinematográfica que Wenders então vivia, embora hoje possam estar superados. O produtor reclama do diretor que os financistas só queriam uma história, enquanto o diretor argumenta que poderia fazer um filme só com o espaço entre as personagens; as paredes de que fala o produtor como se fossem a história que sustenta o filme, desaparecem, na concepção do diretor, para que o filme se erga só com os espaços. O produtor, amargo, canta algo como “Hollywood, Hollywood! Não há lugar melhor para se viver!” Curiosamente, Wenders é um apaixonado pelo cinema americano clássico, como se depreende por sua utilização do cineasta Samuel Fuller na pele do operador de câmara Joe (Sam já aparecera antes em O amigo americano, 1977); Fuller vive uma cena clássica em Pierrot le fou (1965), do franco-suíço Jean-Luc Godard, onde, indagado por Jean-Paulo Belmondo, diz que cinema é um campo de batalha, é violência, é ódio, é emoção. De uma certa maneira, mas num campo oposto, Wenders abraça esta visão real-metafórica de um filme na sequência final de O estado das coisas: o artista assume que sua câmara é uma arma e que a forma de usá-la pode matar seus inimigos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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