O Estado Puro do Cinema
Crônica de um Verão é um marco do cinema e é cinema em estado puro
“Certamente a estrela era e é apenas uma das possibilidades do cinema. Ela não estava necessariamente inscrita, já o dissemos, na natureza do meio de expressão cinematográfica, mas foi este que a tornou possível. Um outro cinema, baseado em não-atores, poderia perfeitamente ser desenvolvido. A economia capitalista e a mitologia do mundo moderno, contudo —sobretudo a mitologia do amor—, determinaram essa hipertrofia, essa hidrocefalia, essa monstruosidade sagrada: a estrela de cinema.” Este parágrafo é umas das essências do livro As estrelas; mito e sedução no cinema (1972), um estudo do fenômeno da estrela de cinema feito pelo pensador francês Edgar Morin.
É certamente nas possibilidades deste “outro cinema” a que se refere seu texto, que Morin deveria estar pensando quando rodou, juntamente com o documentarista francês Jean Rouch, Crônica de um verão (Chronique d’un été; 1961). É um cinema baseado em não-atores, como poderia ter sido o cinema desde seus princípios se não fosse a “hidrocefalia capitalista”, no dizer de Morin. É a verdadeira matriz dos mais revolucionários documentários que se fazem hoje em dia, na aurora do século XXI. Um dos aspectos inovadores da realização de Rouch e Morin é inserir os próprios realizadores no centro da ação, desaparece a neutralidade objetiva do documentário clássico, o cineasta é tão personagem quanto os outros seres sobre os quais sua câmara se debruça; desde o começo do filme, a primeira entrevista com uma pesquisadora social que é o trampolim do filme para entrar em contato com pessoas mais comuns, Rouch e Morin não se pejam de estar ali, visíveis, lado a lado com seu objeto de filmagem; no desenrolar do documentário, Rouch vai ausentar-se mais e Morin é uma espécie de “cabeça” da costura narrativa que passa a ser a principal criatura em cena, pela provocação e estimulação que dá aos outros seres que cruzam pelas imagens. Como identifica Consuelo Lins em seu ensaio O cinema de Eduardo Coutinho (2004), o clássico de Rouch e Morin é uma inspiração possível à metodologia de Coutinho a partir de Cabra marcado para morrer (1984), sem embargo dos abismos temáticos entre ambos —isto é, a melancolia européia dos anos 60 e o desconsolo político brasileiro dos anos 80. Escreve Consuelo: “O que há de essencial em Crônica de um verão, que resiste ao tempo com tanto frescor, é justamente a possibilidade de um outro tipo de relação entre quem filma e quem é filmado, e a transformação dos envolvidos em função do filme.” Coutinho vai radicalizando esta invenção de Rouch e Morin, até chegar a esta depuração máxima que é O fim e o princípio (2005). Assim, Crônica de um verão é uma obra inaugural do processo documentário de hoje; conheço quase nada da obra de Rouch (só Jaguar, 1967, rodado na África, e que é uma obra-prima igualmente), mas ouso concordar com uma observação de minha amiga Fatimarlei Lunardelli à saída da sessão de Crônica: o filme tem mais de Morin que de Rouch; explicitando melhor, eu diria que Rouch emprestou sua habilidade de documentarista a um projeto intelectual-fílmico de Morin; todo o processo moral e cerebral de Crônica de um verão se deve a Morin; ele é mais do que foi Henri Laborit em Meu tio da América (1980), do francês Alain Resnais, é uma personagem como Laborit mas ao mesmo tempo um agente realizador e também um contracenador com aquelas figuras humanas que ele traz para o cinema e recria; quem é um habituado com o universo dos livros de Morin, vai perceber em Crônica de um verão a poesia radical do filósofo, sua notável generosidade antropológica, suas desconfianças sagazes para com aquilo que a sociedade capitalista se transformou transformando a vida do homem (as indagações iniciais nas ruas sobre a felicidade —curioso, aquela pesquisadora social, que na primeira cena é somente uma personagem, vira de repente num membro da equipe de filmagem— leva a questionar sobre a verdadeira eficácia do trabalho hoje nas relações entre as pessoas; o trabalho, sempre tão louvado como necessário, seria fonte de infelicidade na sociedade hoje construída? seria preferível a esta forma de trabalho a vagabundagem?).
No fim do filme os realizadores se reúnem com as pessoas que foram filmadas e lhes mostram o copião. Este “ver o filme” das pessoas que dele participaram não aparece, ao menos na versão que deparamos na Sala P.F. Gastal de Porto Alegre; isto diverge do final do filme brasileiro Nem gravata, nem honra (2001), de Marcelo Masagão, onde a câmara espia as reações das pessoas às suas próprias aparições na tela. Rouch e Morin mostram o “depois da sessão”: após a visão do filme, visão que não aparece na narrativa, as pessoas e os realizadores trocam idéias sobre o que viram, discutem especialmente a questão da autenticidade das entrevistas, ressaltando ora o artificialismo duma “vida diante da câmara”, ora o excessivo transbordamento de sinceridade de alguém como se estivesse encenando acentuadamente seu real para o filme.
Crônica de um verão é um marco do cinema e é cinema em estado puro. Ele tem uma tristeza típica das produções cinematográficas européias intelectualizadas dos anos 50 e 60, com o italiano Michelangelo Antonioni à frente. É por isso que se diz que Morin determinou o espírito do filme mais do que Rouch; Morin, então chegando aos quarenta anos, era um intelectual europeu característico, com sua inteligência ambígua e seu ceticismo desorientador. Mas Crônica de um verão, ao propor uma linguagem documental que rompe com os limites do direto, vai buscar no remoto Toni (1934), do francês Jean Renoir, uma obra de ficção, uma curiosa identidade. Diz Renoir desse seu filme que é tido como a matriz do neo-realismo: “Nossa ambição era a de que o público pudesse imaginar que uma câmera invisível filmara as fases de um conflito, sem que isso fosse percebido pelas pessoas arrastadas inconscientemente para a ação.” Em determinados momentos de Crônica de um verão é esta sensação do observador: o natural elimina a câmara. É verdade que a desmontagem metalinguística do final destrói a ilusão. Mas não logra desmanchar a brutal sinceridade de encenação que vem até desta cínica seqüência de encerramento.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br