O Cineasta Ressuscitando

É com surpresa, pois, que se percebe que A ressurreição de Adam (Adam resurrected; 2008) é o que mais se aproxima do modelo de cinema pensado por Schrader como transcendental

06/05/2018 01:51 Por Eron Duarte Fagundes
O Cineasta Ressuscitando

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“O estilo transcendental, como a arte bizantina, é uma forma universal porque pode acomodar diferentes artistas e diferentes culturas dentro duma estrutura comum.” Estas palavras estão no seio do livro O estilo transcendental em filme (1972), onde o norte-americano Paul Schrader, tratando duma trindade do cinema espiritual formada pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer, pelo japonês Yasujiro Ozu e pelo francês Robert Bresson, compôs um dos ensaios fundamentais sobre cinema no século XX. Ao escrever roteiros para seu amigo Martin Scorsese, Schrader é igualmente revolucionário: basta pensar em Motorista de táxi (1976) e Touro indomável (1980). Os filmes que ele dirigiu, todavia, não autorizam o entusiasmo despertado por seu livro e roteiros: Gigolô americano (1980) e Mishima, uma vida em quatro tempos (1985) não tinham lá essa bola toda.

É com surpresa, pois, que se percebe que A ressurreição de Adam (Adam resurrected; 2008) é o que mais se aproxima do modelo de cinema pensado por Schrader como transcendental. Feito sem concessões de espécie alguma, obedecendo a impulsos fílmicos exclusivos, A ressurreição de Adam trata de um tema bastante batido ao longo do século passado, o Holocausto, de maneira cinematograficamente explosiva, recorrendo a encenações metafóricas (quase fellinianas muitas vezes) e a um vaivém temporal-visual (cores, preto-e-branco, passado preto num campo de concentração na Alemanha, presente colorido num sanatório israelense nos anos 50) que atingem a profundidade sempre almejada pelo pensador Schrader.

O realizador americano joga com muita paciência e saber cinematográfico as relações entre o passado e o presente na mente humana. O protagonista do filme de Schrader, Adam Stein, é um judeu que, sobrevivendo aos campos de concentração nazista, vive nos anos 50 num sanatório no deserto de Israel; o sanatório é um depositário de muitos que, assim como Adam, expõem ali os danos mentais do Holocausto. Nos anos 30, antes da guerra, Adam era um apresentador de circo, hábil comunicador com as plateias dispostas a rir; numa destas apresentações, brinca com a sisudez dum comandante alemão. Estourada a guerra, Stein cai nas mãos do aludido general nazista, que o associa a seu cão e resolve brincar de dois cães (o cão-bicho e o cão-homem) com seu judeuzinho. Nos anos 50, no sanatório, um garoto que pensa que é um cão restitui a Adam as evocações perniciosas. O cão está dentro de Adam, assim como o general nazista está dentro de Adam; é este estar-dentro que faz com que Adam tenha procedimentos humilhantes e excêntricos com o garoto-cão.

De uma certa maneira, A ressurreição de Adam lembra uma certa exposição circense de algumas criaturas do cinema que havia em O homem elefante (1980), do também americano David Lynch. É claro que as abstrações estéticas de Lynch são vagas; A ressurreição de Adam, apesar das procuras transcendentais de Schrader, tem um peso temático que dilui ou oculta o abstracionismo, ou a generalidade reflexiva. É como se A ressurreição de Adam pudesse ser o imponderável de um circo à Lynch aplicado ao universo  nazista.

Jeff Goldblum (o judeu) e Willem Dafoe (o nazista) estão extraordinários nos papéis centrais e têm uma sequência quase ao final arrebatadoramente mística. O ponto de partida de A ressurreição de Adam é um romance do israelense Yoram Kaniuk e o roteiro, pasme-se, não pertence a Schrader (habitualmente mais um “escritor cinematográfico” do que um cineasta na dinâmica do filme), ele o delegou a Noah Stollman, talvez por questões de autenticidade étnica. Que me conste, o filme não teve distribuição comercial no Brasil: algumas exibições alternativas no centro do país e um lançamento em DVD.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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