A Rejeitada

A personagem central de Sem teto nem lei é uma andarilha suja, maltrapilha, fedorenta que vive à margem da sociedade

24/07/2018 23:38 Por Eron Duarte Fagundes
A Rejeitada

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Uma mulher é vista, espantadamente, morta num buraco do terreno por um lavrador; o corpo dela está irreconhecível. Esta é a sequência que abre Sem teto nem lei (Sans toi ni loi; 1985), talvez o ponto de maturidade do cinema da belga-francesa Agnès Varda; no Brasil o filme foi lançado, quatro anos depois de ter sido produzido, com o título de Os rejeitados, como querendo estabelecer de modelo o comportamento da protagonista para um grupo de seres europeus que começavam a surgir insistentemente entre os anos 70 e 80; neste aspecto o filme da Varda se aproxima das intenções de Messidor (1979), um filme do suíço Alain Tanner nunca exibido comercialmente no Brasil e onde duas garotas diferentes perambulam marginalmente pelo interior da Suíça.

Depois da sequência-prólogo, a realizadora age mais ou menos como o estabelecido pelo americano Orson Welles em Cidadão Kane (1941): a morte de uma pessoa deflagra o contato com entrevistados e depoimentos de almas que de alguma maneira viram ou se relacionaram com a morta; assim, num esforço de documentário de ficção, se tenta erguer a figura de alguém a partir da visão do outro (de outros).

A personagem central de Sem teto nem lei é uma andarilha suja, maltrapilha, fedorenta que vive à margem da sociedade mas belisca esta mesma sociedade ao entrar em contato com as pessoas desta sociedade, madames, empregadas, trabalhadores, prostitutas, jovens e velhinhas. Alguns depoimentos postam-se indiferentemente diante dela. Outras criaturas se arrependem de não ter feito mais por ela. A andarilha é uma jovem desleixada; a uma mesa, a câmara exacerba ao contrastar as belas unhas duma interlocutora com as unhas penosamente sujas da protagonista. Os caminhos de Mona, a personagem central, é uma peregrinação necessária mas amarga, como aquela do burrinho Baltasar em A grande testemunha (1966), do também francês Robert Bresson; sem o misticismo e a espiritualidade de Bresson, Varda percorre a dialética intelectual típica dos franceses que se formaram nos anos 50 e 60: a andarilha é ela mesma, seus opostos e todos os símbolos que carrega.

No fim do filme a câmara reconstitui a morte de Mona, agonizando de frio e fome num buraco do terreno, unindo as duas pontas da narrativa (o cadáver irreconhecível da primeira sequência e a jovem que expira em frêmitos na última imagem). Sem teto nem lei é dedicado à escritora Nathalie Serraute, o que, para além da amizade entre a cineasta e a romancista, há aí uma identidade entre o “nouveau roman” (movimento literário a que Serraute se filia) e a “nouvelle vague” (movimento cinematográfico a que Varda pertenceu); as trocas entre a literatura e o cinema sempre abundaram no cinema francês (basta pensar em Eric Rohmer e Alain Resnais), mas nas confluências do “nouveau roman” e da “nouvelle vague” estas permutas se exacerbaram, criando uma característica literária do cinema francês que muitas vezes dividiu asperamente os críticos.

Enfeixando, cabe realçar a aguda interpretação de Sandrine Bonnaire em seus jovens anos: ela se encaixa à personalidade cinematográfica de Agnès Varda, assim como em sua estreia Bonnaire já se havia mimetizado no estilo de filmar do francês Maurice Pialat, sem perder a si mesma, todavia, em ambos os filmes.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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