É coisa dos franceses. Não recuam diante do raciocínio. Não temem pensar. Ainda que o enfrentamento possa trazer feridas. Sua literatura é deste jeito. Seu cinema é assim. Seus pensadores, então, nem se fala. Enquanto no Renascimento os portugueses navegavam, apraz-me pensar num francês no gabinete de ideias. Serge Daney (1944-1992), cuja morte cedo se deu por causa de complicações com a AIDS, é um dos grandes pensadores cinematográficos franceses; lúcido e agudo, ele demonstrava sempre saber do que estava falando.

A rampa: cahiers du cinema, 1970-1982 (La rampe, cahier critique, 1970-1982; 1983) foi escrito dez anos antes de sua morte. É uma notável subida da cabeça cinematográfica de Daney pelos cinemas de alguns diretores, especialmente franceses, como Robert Bresson e Jean-Luc Godard, mas também com alusões aos americanos, como Howard Hawks e Steven Spielberg. Ao tratar do derradeiro trabalho de Bresson, o crítico estabelece uma distinção original entre a voz out (aquela que fetichiza o momento de saída da fala dos lábios) e a voz trough (a que passa através de, por exemplo, uma personagem de costas cuja voz vemos sair através do corpo mas não vemos sua origem primária, a boca), fazendo que estes institutos da linguagem do cinema sejam substratos da clássica voz in, cuja perturbação de conceito é trazida pela utilização em Índia song (1975), de Marguerite Duras (observa Daney sobre o filme de Duras: “o lugar de todos os poderes, de todas as arbitrariedades, de todos os esquecimentos”). Ainda diz Daney: “Da ‘política dos autores’, passamos também por uma ‘política das vozes’, vozes inimitáveis (Godard, Duras, Bresson há muito tempo). Vingança do rádio sobre o cinema, de Vertov sobre Eisenstein. Da voz fundamental sobre o discurso construído. Do feminino sobre o masculino.”

Os pontos altos de A rampa são vários. É uma subida em que se está sempre no cume. Um destes trechos incontornáveis é sua análise de Nick’s movie (1980) como um filme do alemão Wim Wenders que se transformou em parte num filme do moribundo Nicholas Ray (que morreria durante as filmagens), em parte num híbrido montado ao deus-dará por outro, mas constantemente de Ray e Wenders, um exemplar do que o crítico chamou cine-filho, o cinéfilo diante do pai cineasta anterior transformando-se em cineasta de hoje.

Já em agosto de 1982 Daney conclui A rampa com uma frase que parece aqui, do século XXI, pós-Maffesoli: “É então que nos damos conta de que o arcaico e o pós-moderno guardam entre si um parentesco.” Coisas assim fazem de A rampa uma obra de lucidez destemida. Como são os franceses, que nunca temem a meditação, ainda que logo adiante ela tope obstáculos que a machuquem.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)