A Rusticidade de Filmar
Poucas vezes o entretenimento cinematografico americano atingiu tao perfeita categoria art?stica quanto em Meu odio sera sua heranca (1969)
Poucas vezes o entretenimento cinematográfico americano atingiu tão perfeita categoria artística quanto em Meu ódio será sua herança (1969), título brasileiro esquisito para o original The wild bunch, cuja tradução é O bando selvagem. Seu autor, o cineasta Sam Peckinpah, rodou este filme em estado de graça; cada sequência é uma peça de antologia, dificilmente sairá da memória do espectador a crueldade das risonhas crianças que no início da narrativa se divertem com os azares de alguns animais no solo e depois queimam vivo um esperneante escorpião, não há como esquecer a ponte que rui explodida no fundo de um plano geral, é memorável a imagem dos durões de Peckinpah cavalgando para a câmara. Tudo é perfeito em Meu ódio será sua herança: a direção solta e selvagem de Peckinpah, os intérpretes adequadíssimos para as personagens, esta orgíaca profusão de imagens de um faroeste mítico e inigualável. Faroeste para mim é com Peckinpah, que subverte as convenções de John Ford e extravasa seu sarcasmo de descendência indígena.
Sim. Peckinpah filma um pouco como um índio americano que, refinando-se na civilização, não perdeu sua rusticidade original. Nos planos que saltitam na montagem da sequência final do filme as personagens que preencheram nossa paixão são vistas rindo-se com todo o deboche próprio de um homem do Oeste americano, dado a bebidas, mulheres e dinheiro; é um riso selvagem, primitivo, que insere o divertimento na arte cinematográfica do século XX de maneira digna, plasticamente inventiva. Até mesmo o ator Jaime Sanchez, que aparecera pouco antes, em seu papel de mexicano aliado dos americanos, arrastado por um cavalo sob os apupos de seu povo e morre degolado friamente por um general do México, ri-se gostosamente na saltitante sequência de encerramento; é a vida que explode no universo de Peckinpah, como se todo o sangue e o sofrimento anterior não fossem mais que a preparação para o êxtase final, risos e grandiosas filmagens.
Há uma cena quase ao final em que os cavaleiros aparecem abruptamemente de costas para a câmara, seu movimento de afastamento é sombrio e está entre sombras; é uma cena reveladora das características enviesadas e delirantemente complexas do cinema de Peckinpah. Nada é gratuito em Meu ódio será sua herança. O passar dos anos transformou cada evocação de imagem do filme numa peça de perfeição do movimento cinematográfico: é a dignidade máxima do cinema como arte, ainda que use de elementos mais afins àquilo que o público dos anos 60 estava acostumado. Todavia Peckinpah insere expoentes de estranheza íntima de violência que inquieta esta platéia cativa do faroeste.
Desde seu primeiro filme, desde Parceiros da morte (1961), o cineasta estabeleceu um pacto estilístico com a violência em cena. Ela edificou sua linguagem. Esta linguagem produziu seus contornos mais consistentes neste Meu ódio será sua herança e em Sob o domínio do medo (1971); teve seus delírios incompreendidos em Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (1974) e A cruz de ferro (1978), mas em seus últimos filmes, Comboio (1978) e O casal Ostermann (1984), conquanto ainda brilhante em produção visual, perdeu seu pique criativo em honra de namorar a platéia de Hollywood.
Formado no cinema dos anos 70 e 80 visto em Porto Alegre, este espectador não poderia deixar de reverenciar a capacidade cinematográfica de um dos grandes do cinema americano daquela época, Sam Peckinpah. E Meu ódio será sua herança é uma revisão estupenda para esta reverência.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br