As Contradicoes Internas de Ursula
Ursula, lido agora neste fim da segunda d?cada do seculo XXI, permite ao leitor alguns olhares internos conflitantes
A escritora brasileira Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, em 11 de março de 1822, e faleceu na cidade de Guimarães, Maranhão, em 11 de novembro de 1917. Pelo que consta, foi a primeira mulher que publicou livros no Brasil. Mulher e negra, ela foi pouco citada em vida e permaneceu por um bom tempo após sua morte desconhecida de nossos estudiosos; ainda hoje, sua existência literária é bastante marginal numa sociedade sexista e racista. Sua principal obra parece ser o romance Úrsula (1859), que só mais recentemente veio a ter referências entre quem estuda literatura ou simplesmente lê para entender os mecanismos dos livros na estrutura social.
Úrsula, lido agora neste fim da segunda década do século XXI, permite ao leitor alguns olhares internos conflitantes. Numa visão inicial, no correr das linhas, Úrsula se inscreve como uma narrativa recheada dos exageros românticos de sua época: a amizade entre o negro Túlio e o branco Tancredo e o amor entre os jovens Tancredo e Úrsula são pintados com sentimentalismo exacerbado desde as primeiras páginas; os sentimentos das personagens na narrativa de Maria Firmina são demasiado singelos e fáceis. Não se distingue muito daquilo que fazia um dos contemporâneos dela, o cearense José de Alencar. Há uma parecença temática, é certo, mas que se torna muito clara na sintaxe, no vocabulário e no uso de algumas metáforas extraídas da natureza brasileira de feição tropical: quem leu Alencar, lendo agora Maria Firmina, parece estar vendo um pouco escritas espelhadas. Parece-me, sim, que Maria Firmina tem mais densidade que Alencar em sua linguagem; mas é uma diferença sutil, de tom digamos, e certamente só um olhar mais percuciente poderá constatar de fato esta superioridade da prosa de Firmina sobre a de Alencar, apesar do uso formal próximo.
Até aí, nada de novo. Úrsula seria somente um exemplar da literatura romântica brasileira do meio do século XIX; que não tivera a sorte de sobrevivência de Alencar, um nordestino que jovem emigrou para a corte. O conflito do leitor crítico, o que o inquieta surge no momento em que, bem cedo na história narrada, se descortina quando a voz duma narradora onisciente passa a denunciar a escravatura e os maus tratos dados a seres humanos então escravizados; se observarmos bem, e pensarmos na época em que o romance foi escrito, antes de Castro Alves e Joaquim Nabuco, trata-se duma peça de escândalo, um atrevimento surpreendente; como pôde alguém escrever com tanta clareza contra algo estabelecido como normal pela sociedade daqueles anos? De certa maneira, isto pode explicar a marginalização do romance por mais um século, e nos dias atuais uma obra como Úrsula choca-se ainda contra as estruturas sociais que, no fundo, por fenômenos ancestrais, não mudaram tanto assim. Eis, bem neste centro reflexivo, o ninho de contradições internas do romance de Maria Firmina, seus arcaísmos estéticos (e linguísticos) contraditando sua avançada posição ideológica. O leitor pode constranger-se com certas saídas de situações e linguagem que exacerbam o teor romântico da atmosfera narrativa, ao mesmo tempo em que, esquecendo a declamação muitas vezes demasiado sonoras e vazias (o uso constante da segunda pessoa do plural nos diálogos, adjetivações e construções sintáticas que se perderam no tempo mas eram então lugares-comuns dos prosadores), se surpreende com a grande denúncia social de que se reveste o texto, sob a forma duma escritora que é mulher e negra e põe em cena seu feminismo e sua luta antirracista com uma tenacidade invulgares —principalmente para o meio do século XIX e aquele meio provinciano em que vivia.
No prólogo Maria Firmina adverte: “Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume.” Mergulhada em sua época, Maria Firmina usa as metáforas da natureza como o fazia Alencar é sempre bom lembrar (“à hora em que os pássaros despertam alegres e amorosos”), tem uma religiosidade simplória pré-ateísmo do século XX (“a essa hora mágica em que toda a criação louva ao Senhor”), mas irrompe atrevida e intemporal no retrato da grande infâmia brasileira de sua época, a escravidão dos negros (“Meteram-me a mim e mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio”). Há, no entrecho do romance, situações escabrosas (o pai da Tancredo que vem a desposar uma mulher que o filho amava, o tio de Úrsula que sente desejo incestuoso pela sobrinha) que poderiam pertencer ao universo teatral de Nelson Rodrigues no século XX; no entanto, estas situações não chegam a ter uma utilização de escândalo, parece algo mergulhado no teor romântico duma trama característica da literatura que se fazia no romantismo nacional; o escândalo moral e a denúncia social (a escravidão) se dissolvem um pouco no emaranhado de influências de seu tempo sobre a escritora, digamos que se amenizam os impactos sem que o retirem totalmente de cena. Embora negra, Maria Firmina põe na linha de frente de sua história um casal romântico branco; talvez sua chamada de consciência nasça por aí, mexendo com as relações entre brancos e negros na sociedade brasileira a partir da proposta de mudança de comportamento de alguns brancos. Com final trágico, em que os protagonistas vêm a morrer e o vilão pena sua tortuosa culpa, Úrsula adota também uma espécie de sobrado feito de Shakespeare, embora não se imponha tanto assim do ponto de vista dramático. Inevitavelmente um romance cujas contradições de quem está submerso numa sociedade perplexa, verborrágica, barroca, arcaica, e mesmo assim avança para uma crítica aqui e ali avassaladora sobre um instituto social desumano, Úrsula é um texto que, vencidas as barreiras da língua antiga de Maria Firmina por aqueles leitores desabituados com estas formas, merece ser amplamente discutido e rediscutido no atual momento brasileiro. Porque traz em suas entranhas as próprias contradições de nossa sociedade. E, assim dizendo, de todos nós, indivíduos formados por tudo isto.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br