As Amigas: A Amarguira
Ao longo dos anos, o cineasta americano Steven Soderbergh tem hesitado entre fazer filmes a margem dos interesses do grande publico
Ao longo dos anos, o cineasta americano Steven Soderbergh tem hesitado, em seu projeto estético, entre fazer filmes à margem dos interesses do grande público e outros que postulam constrangidas conciliações comerciais. Let them all talk (2020), distribuído pela HBO Max nestes tempos de pandemia internacional, para se ver no streaming, é uma obra que traz o melhor do rigor narrativo independente de Soderbergh; não chega a ser tão radical e fechado quanto se pôde ver nas sombras estéticas de Kafka (1991) e O estranho (1999), mas resgata aquela espécie de sensibilidade que se ocultara bastante num filme como Contágio (2011), mais aberto para os olhos fáceis da plateia (curiosamente Contágio é um filme de antecipação que faz a descrição duma epidemia global muito semelhante à de hoje). Esta atenção rigorosa do realizador para uma construção cinematográfica não impede inteiramente o lado ambiguamente comercial de seu projeto; e esta duplicidade de intenções pode ser constatada já a partir da utilização da intérprete central, Meryl Streep: acompanhada por outras duas atrizes tão boas quanto ela, Dianne Wiest e Candice Bergen, Meryl é, das três, a que sobreviveu melhor no mercado; sua função no filme de Soderbergh parece ser dupla mesmo, sua capacidade interpretativa e sua figura bem-posta de estrela do cinema americano atual.
O que se discute em cena, a partir do roteiro de Deborah Eisenberg, cujos aspectos literários são pronunciados com raro senso dramático e espontaneidade por todo o elenco, é também isto: as relações entre uma arte exigente e que no contato com boa parte das pessoas padece de obscuridade e aquele artista que tem os atributos dum simplório artesão que o que quer é vender seu produto. O filme abre com a imagem dum primeiro plano do rosto de Meryl, sempre um deslumbramento; depois das primeiras palavras, em off, que emolduram a face da atriz, o plano se abre, num recuo da câmara, a personagem está num restaurante e dialoga com uma jovem, uma agente literária. Meryl vive Alice Hughes, uma escritora bem conceituada e exigente com seu ofício. Boa parte da narrativa vai passar-se num cruzeiro rumo do Reino Unido, onde Alice vai receber um prêmio literário. Alice planeja o cruzeiro, convidando duas amigas da juventude, tempos universitários, Roberta (Candice) e Susan (Dianne); a bordo também vai o sobrinho de Alice, uma espécie de secretário da escritora, e a jovem agente literária com quem Alice conversava na cena de abertura, estes dois jovens concentram em suas cenas uma atração um pelo outro. As diferenças de temperamentos e visões de mundo entre as três amigas, especialmente entre Alice e Roberta, edificam uma aspereza humana na narrativa. O conflito de artista de Alice se dá em duas situações do cruzeiro: numa palestra, em que revela sua admiração por uma escritora inglesa obscura, e quando encontram um autor de novelas policiais que lhe parece simplificar a vida.
A morte final de Alice, depois do cruzeiro, coroa a trajetória, dentro do filme de Soderbergh, mais de amargura que de encontro entre os seres humanos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br