Desmontando a Literatura
Natalia questiona muito o modo como as mulheres que escrevem sao tratadas pelos literatos homens
Antes de se tornar a ficcionista que conhecemos, Natalia Borges Polesso estudou muito. O objeto em que hoje brilha: a literatura. A dissertação de mestrado na Universidade de Caxias do Sul lhe rendeu um ensaio que, vê-se ao lê-lo, pode ter ajudado muito a Natalia a ser escritora que é atualmente. As relações de poder e o espaço como região nos contos de Tania Jamardo Faillace (2011) vasculha ideias a partir de alguns contos de uma autora gaúcha que chegou, em determinada época, a gozar de prestígio e leitores e hoje (há dez anos, data do texto de Natalia, como agora, quando escrevo por aqui) está atirada ao esquecimento: longe dos compêndios (escolares ou não) que estudam literatura, sem leitores, murmurada aqui e ali por um ou outro dissidente. Nota-se que Natalia —escritora, mulher, admiradora da contista Tania— está mais incomodada que qualquer outro leitor de suas reflexões; Natalia questiona muito o modo como as mulheres que escrevem são tratadas pelos literatos homens (“uma série de enxovalhos” do crítico Guilhermino César para com a escritora Delfina, o julgamento seco, fatal e preconceituoso do romancista Graciliano Ramos para com sua par Rachel de Queiroz); e aponta no ostracismo de Tania a causa central, uma mulher. Uma autora viva morta em vida que a agudez analítica de Natalia busca trazer a alguma circulação.
Lá acima se anota aqui a relação entre as meditações da ensaísta sobre a ficção de Tania e a prática novelística que Natalia viria a praticar em livros posteriores como Controle (2019) e A extinção das abelhas (2021), para falar de obras que este comentarista conhece. As constantes e insinuantes dialéticas e curvas que Natalia dá em sua dissertação certamente foram amadurecendo e transformando-se, até dar no caudal estilístico e temático que são seus trabalhos ficcionais. Numa das frases finais de seu ensaio sobre Tania, Natalia vai revelando a característica extenuante de sua busca, uma extenuação que não é somente estética mas sobretudo humana, de visão de mundo: “Tenho consciência de que essa dissertação é uma parte de um processo formal que se iniciou na graduação e que vem se estendendo no meu modo de pensar, sentir e agir.”
As relações de poder e o espaço como região nos contos de Tania Jamardo Faillace se insere com rara naturalidade no processo criativo da escritora Natalia Borges Polesso. É o embrião e ao mesmo tempo uma luz. Identifica boa parte de suas perplexidades como artista da palavra. Poderia ser sua carta de apresentação, brilhante e tensa, se tivéssemos lido a dissertação antes. É agora um holofote permanente em torno de cada coisa que ela possa vir a escrever.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br