O Que Foi o Cinema Insolito de Bellocchio
Bellocchio exacerba, em Diabo no Corpo, no uso de planos-sequencia
Há uma cena em que Andrea, a personagem masculina central de Diabo no corpo (Diavolo in corpo; 1986), talvez o ponto mais inovador do cinema do italiano Marco Bellocchio, entra na sala de aula pulando a janela: está atrasado. O professor, que fazia sua dissertação oral para os alunos, se espanta e pergunta a Andrea: “Que estás a fazer?” Andrea responde com simplicidade e ingenuidade: “Entrando.” O professor retruca que o habitual é entrar pela porta; e dá um adjetivo ao ato do aluno: insólito. Este filme de Bellocchio, e boa parte do que ele realizou até os anos 80, é feito de fragmentos insólitos. Diabo no corpo, visto no coração de sua época ou revisto nas confusões do novo milênio, é um acúmulo de insólitos que então o cineasta sabia dispor em seus roteiros e montagens como ninguém. Há em cada quadro, diálogo ou movimento um frescor criativo que dificilmente se topará em algum outro filme do diretor.
A abertura já é uma estranha provocação. Um longo plano fixo da câmara se inclina sobre alguns telhados de prédios, que se grudam. No fundo do plano vemos algo que parece ser uma sala de aula: jovens dispostos em carteiras e ouvimos a voz de alguém (o professor) na exposição de um assunto. Na fixidez da câmara surge, por sobre o telhado, uma jovem negra que de repente passa a crispar seus gestos e expressões, contraindo-se, exasperando-se, gritando; ela ameaça jogar-se dali, matar-se. Sob este instante de desespero, o roteiro de Bellocchio traz para as imagens o sopro vital e erótico; a falha do suicídio da rapariga negra tem anteparo em Giulia, uma burguesa cujo noivo ausente a põe em neuroses constantes, tratando-se com um psicanalista. Na sala de aula, o estudante Andrea se deixa fascinar pela figura de Giulia e insta com ela para se enamorarem. Diabo no corpo trata desta relação entre os jovens Giulia e Andrea, tensos, inconstantes, inseguros, porém profundamente erotizados. A encenação mágica e rigorosa de Bellocchio erotiza agudamente as personagens. A psicanálise do sexo em Diabo o corpo obedece a uma transformação cinematográfica radical.
Longe das facilidades que seu cinema adquiriu recentemente (O traidor, 2019, é um bom exemplo), Bellocchio exacerba, em Diabo no corpo, no uso de planos-sequência. Uma destas belas utilizações duma filmagem em plano único, sem cortes, acompanha uma densa relação sexual de Giulia e Andrea, enquadrando bocas e corpos, percebendo movimentos carnais por baixo duma imagem não-explícita, espremendo os gemidos na direção do orgasmo. Mas a cena mais famosa é a breve filmagem duma felação. Entre os risos de natureza estética da atriz holandesa Maruschka Detmers (na verdade, ela é dublada pela italiana Anna Cesareni) e a genitália de Federico Pitzalis que assoma de dentro da roupa para as carícias manuais e logo para a boca travessa de sua parceira, Bellocchio propõe um opus da erotização nas salas de cinema de sua época. A felação no filme de Bellocchio corresponde ao barulho em torno da sequência de sexo anal com manteiga em O último tango em Paris (1977), do italiano Bernardo Bertolucci, e nas penetrações ousadas vistas pela câmara em O império dos sentidos (1976), do japonês Nagisa Oshima. Algo como ícones sexuais do cinema num tempo que já parece longínquo; mas sempre é bom resgatar agora, quando uma certa obscuridade e um certo arcaísmo morais tornam.
Ainda acerca da felação, naturalmente chamativa para o público, a intérprete Maruschka Detmers se lamentou mais tarde de ter feito esta cena, não por pudores morais, como outras atrizes, mas porque isto obscureceu outros trabalhos dela no cinema, como a Carmen em Prenome Carmen (1983), de Jean-Luc Godard. O filme de Bellocchio é uma transcrição livre duma novela de Raymond Radiguet do início do século XX (Radiguet é um dos gênios malditos da literatura francesa, tendo morrido de febre tifoide aos 20 anos de idade); é tão liberal a adaptação de Radiguet que nos créditos do filme não aparece a indicação do livro como fonte do roteiro; em 1947 o diretor francês Claude Autant-Lara fez uma filmagem do texto de Radiguet, valendo-se do mesmo título original, Le diable au corps. Uma sequência extraordinária, que dá conta das possibilidades do cinema de Bellocchio na época, é a que fecha a narrativa de Diabo no corpo. Andrea chega diante da banca para sua dissertação ou questionamento de fim de curso. No início a câmara alterna a descontração do jovem diante de seus mestres com a chegada de Giulia na plateia, sua desibinição e distanciamento ao acender um cigarro e fumar. Depois, nos fotogramas finais que antecedem os créditos, a câmara detém-se no rosto de Giulia, observando seu crescente lacrimejar nos olhos, misturando orgasmo intelectual com um certo rasgo erótico a que a interpretação da atriz corresponde com plena vitalidade cinematográfica. Ali está uma das mais belas imagens vistas no cinema, nestes planos derradeiros, a inesperada e estranha expressão tirada do baú por Maruschka Detmers.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br