As Imagens da Neurose
Beau Tem mMdo se vale da caracterizacao extremada de Joaquin Phoenix para ajudar a mergulhar na demencia de seu universo


Com Beau tem medo (Beau is afraid; 2023) o realizador norte-americano Ari Aster faz um dos filmes mais claustrofóbicos e niilistas deste século, tão apropriadamente neurótico na tendência dos indivíduos à claustrofobia e à desesperança. Beau é a personagem de nossa época; e Aster o filma com paranoia, como se a câmara, delirante em seus quadros estranhos e que se multiplicam numa montagem rápida (e vertiginosa), estivesse na mão daquela criatura problemática.
Puxando pela memória-vertigem do espectador (ao modo mesmo da forma de filmar de Aster), ocorre um só filme deste século com seres que poderiam assemelhar-se a Beau: Estou pensando em acabar com tudo (2020), de Charlie Kaufman, que, como a obra de Aster, traduz em imagens uma espécie de esquisitice do mal. Pensando na história do cinema, a estranheza opressiva de Beau tem medo tem suas origens em O inquilino (1976), do polonês Roman Polansky, e mais especialmente em Depois de horas (1985), do americano Martin Scorsese. O pesadelo tipo sem saída do filme de Scorsese é algo aproximado da loucura mental filmada como um sonho ruim por Aster: como a personagem de Scorsese, Beau não encontra o caminho de volta —para a casa materna, que seja para o enterro da mãe que morreu (ou seria delírio dele?) com a cabeça decepada por um lustre, ou para a normalidade antiga, esboçada em alguns planos luminosos da adolescência de Beau e sua atração por uma moça.
Com rara felicidade para dar coerência e coesão estéticas a uma narrativa que propõe o desequilíbrio como encenação, Beau tem medo se vale da caracterização extremada de Joaquin Phoenix para ajudar a mergulhar na demência de seu universo, que tem na composição de cenários (as faunas muito inusitadas que habitam algumas ruas espreitadas pela câmara, ruas atulhadas de lixo em alguns planos) e no desenho de cenas um impacto inicial para sua proposta. A sequência em que Beau liga para o celular de sua mãe e alguém atende identificando uma mulher morta na sala, sem a cabeça no corpo, é um dos instantes de perturbação cinematográfica que poucas vezes se teve a oportunidade de ver; tanto o inesperado tragicômico (de humor negro) dos diálogos quanto o ritmo da cena e as formas interpretativas de Phoenix conduzem a este cume emblemático de algo vivido, ainda que numa tela, neste século de tantas neuroses.
Beau pode ser Aster, seu criador desde o roteiro, ou Phoenix, o intérprete que o materializou; mas Beau somos todos nós, ele é um pouco de todos nós, homens do “amaldiçoado” século XXI. É somente um pesadelo? Mas tarda a passar.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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