A Imagem É o Que É

O francês Eric Rohmer busca eliminar de sua imagem cinematográfica toda metáfora visual

30/10/2015 07:41 Por Eron Duarte Fagundes
A Imagem É o Que É

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O francês Eric Rohmer busca eliminar de sua imagem cinematográfica toda metáfora visual; aproximadamente, o que fazia o cineasta japonês Yasujiro Ozu, a imagem significa aquilo que objetivamente significa e não outra coisa, estamos diante de encenações que são documentários ficcionais, o espaço e o cenário são muito contidos e reduzidos a quase nada, os atores são quase-pessoas, os diálogos se trivializam muito, os gestos da câmara se ocultam do observador. A mulher do aviador (La femme de l’aviateur; 1980) foi a primeira realização de Rohmer englobada sob o título de “Comédias e provérbios” e não difere nem um pouco da estrutura despojada e “verbal” dos “Contos morais” e dos “Contos das quatro estações” ou de outros filmes avulsos; afeiçoado do cinema do cotidiano à maneira do francês Jean Renoir, Rohmer descreve com precisão os passos iniciais que vão determinar o jogo moral-sentimental de sua “novela cinematográfica”; o rapaz que trabalha nos Correios, a tentativa de comunicar-se (ainda que com um bilhete: não logra escrever o bilhete, pois a caneta está sem tinta) com sua namorada; o surgimento de um outro homem que descobrimos ser amante da namorada do rapaz (embora este segundo homem seja casado com outra), tudo vai costurado com a habitual banalidade de observação do cineasta, especialmente a dialética de contrapor o plano do jovem que é impedido de deixar o bilhete sob a porta do apartamento da garota com o plano do amante que vai deixar seu bilhete ali e, diante do ruído que faz, a mulher desperta e o atende (são planos que revelam o azar de um e a sorte de outro no mesmo cenário, o corredor do apartamento da mulher); o fim do caso dos amantes porque ele vai voltar para a mulher (que está grávida) e a repulsa que a mulher, rejeitada por  seu amante, vota a seu namorado são outras situações-contraponto que Rohmer põe em cena para certas caracterizações. (Antes mesmo de o jovem topar com sua namorada na narrativa, se nos restasse dúvida se a mulher que ele procura é a mesma que se relaciona com o indivíduo casado, uma fotografia da atriz Marie Rivière num plano da parede do quarto do rapaz esclarece que sim, que é a mesma. Rohmer poderia deixar para depois esta confirmação, manter por mais tempo o suspense, mas resolve jogar com a atenção do espectador para o detalhe, a fotografia, e correr o risco de desvendar logo as linhas paralelas que se articulam na história). De uma certa maneira, todo o início de Conto de verão (1996) age também assim, esvaindo-se na descrição do cotidiano do protagonista numa estação de águas em planos aparentemente vazios mas que se revelam informativos para o andamento posterior do filme.

Ninguém mais do que Rohmer, no cinema, despreza a grandiloqüência, a elevação do tom cinematográfico. Nunca levantar a voz para o observador: mandamento rohmeriano. Não alterar a dicção ainda quando surge em cena a áspera briga do casal, tediosa e insolúvel, quase no fim do filme.

Para penetrar na posição estética de Rohmer, podemos recorrer a um livro sobre música que ele escreveu, Ensaio sobre a noção de profundidade na música (1997). Anota Rohmer: “Descobrindo-se moral, a música centuplica seu poder, centuplica seu vocabulário e se afirma como a única arte capaz de se alimentar de bons sentimentos, as outras tendo que passar pela intermediação do conceito ou do símbolo, sob as vistas do didatismo.” Rohmer monta seus filmes com a transparência de quem quer transpor estes conceitos musicais para o cinema: nada de símbolo, elimina-se o cenário, a interpretação, o roteiro, deixando na tela um significado direto. Certas sutilezas, como o plano-seqüência fixo, o diálogo-in alternando com o diálogo-off, cacoetes rohmerianos dos atores, são convertidas numa realidade objetiva.

No caso de A mulher do aviador as personagens reconstroem o filme em seus cérebros, como ocorre amiúde em Rohmer. Em O joelho de Claire (1970) a personagem Aurora elaborava para o espectador e para a personagem do homem a atração entre o quarentão e a adolescente que se passava em imagens pudicas. A mulher do aviador inventa a personagem da adolescente Lucie, que repete a atitude de Aurora; esta Lucie surge no caminho de François quando este persegue o amante de sua namorada (que está acompanhado duma mulher que se cuida ser sua esposa). Interessada nos dilemas de François e flertando com o rapaz, Lucie estrutura a possível história de François, a namorada, o amante. Então, o que aparece inicialmente como uma seqüência de trivialidades vem a expor-se pela boca de Lucie, a adolescente, uma reflexão um pouco ingênua, um pouco irônica sobre os sentimentos. Como nem François nem Lucie sabem o que verdadeiramente se passa naquilo que espiam, a história construída pode ser real ou não, dependendo do grau de veracidade das pistas, como aqueles primeiros vinte minutos ambíguos de Gosto de cereja (1997), do iraniano Abbas Kiarostami, em que alusões a homossexualismo se incrustam na película; no caso de Kiarostami a ambiguidade vai permanecer para além da projeção, enquanto a objetividade de Rohmer desfaz as sugestões falsas no fechamento de seu filme.

A mulher do aviador inquieta-se com o lugar-comum e o torna seguidamente incomum pelo olhar de um cineasta capaz de uma profundidade ímpar ao lidar com elementos tão pouco propícios para este mar adentro profundo. A mulher do aviador, como Conto de verão, sai um pouco dos liames intelectuais de Rohmer, que em outras obras, como Minha noite com ela (1969) e Conto de inverno (1991), utilizava agudamente suas referências literárias, Pascal no primeiro filme, E.M. Forster e Shakespeare no segundo, partindo daí para raciocínios tão brilhantes como aqueles proporcionados pelo joelho de Claire.

Acresce que Rohmer, em A mulher do aviador, ainda despreza a inserção do comentário musical. Todavia, surge sobre as imagens finais uma curiosa concessão, Rohmer põe na faixa sonora uma canção que fala de Paris: seria o filme uma crônica parisiense? Rohmer, professor de literatura, faz da câmara sua pena: está no ângulo das ruas, dentro dum ônibus, caminhando no trânsito, divagando por um parque, dentro das residências. “De minha parte, bem sei o quanto o amor da música me ajudou a compreender o cinema; e o do cinema, a música.” escreve Rohmer no livro sobre música. Interligação entre as artes na essência, no coração estético. É verdade que Rohmer evita a música na superfície visível de seus filmes: a faixa sonora; mas o conceito musical de cinema aparece na estrutura de suas realizações cinematográficas, que aparecem a olhos bem atentos como peças de câmara: nunca levante a voz (ou o som ou a imagem) para o espectador.

A imagem é o que é.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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