Os Homens da Era da Imagem
Ou divagações de um cinemaníaco formado pela literatura
Há quem diga que a imagem veio para imbecilizar o homem. Outros, mais serenos, dizem que ela simplesmente veio para modificar. Os quadrinhos, a televisão e mesmo o cinema pagam o pato de quem olha torto para a existência da imagem como um substituto da escrita.
Há quem diga que a imagem veio para imbecilizar o homem. Outros, mais serenos, dizem que ela simplesmente veio para modificar. Os quadrinhos, a televisão e mesmo o cinema pagam o pato de quem olha torto para a existência da imagem como um substituto da escrita.
Ivan Cardoso, cineasta brasileiro, anota no começo de sua autoibiografia cinematográfica: “O cinema sempre teve um efeito hipnótico sobre mim. Desde criança vou ao cinema, era um dos programas que meu pai fazia comigo.” António Lobo Antunes, romancista português, em entrevista ao jornalista gaúcho Juremir Machado da Silva, observou, para desespero dos que amam seus textos densamente literários e literariamente rebuscados: “Mais do que os parentes literários, importaram no meu caso o cinema e a música. Integro a geração pós-gutenbergiana da palavra, aberta aos meios de comunicação de massa e, em consequência, à imagem.” Robert Bresson, cineasta francês tido por literário, vem com uma de suas notas clássicas: “O cinematógrafo é uma escrita com imagem em movimento e sons.” Diogo Mainardi, um polêmico escritor e jornalista brasileiro que tem vivido a maior parte de sua vida em Veneza, escreveu um livro de memórias quase como se fosse escrito por seu filho que veio a ter paralisia cerebral em função dum acidente médico hospitalar no suntuoso hospital de Veneza; o livro, A queda; as memórias de um pai em 424 passos (2012), é estruturado em parágrafos curtos, quase como se fosse feito de anotações de um roteiro para um filme estruturado em planos breves, curtos, cheio de cortes metafísicos como um filme de Bresson. O cinema baixando sobre a literatura de Mainardi? As referências artísticas são muitas em A queda: há a literatura do francês Marcel Proust, há a arquitetura do italiano Pietro Lombardi. E no passo 47 Diogo lembra que a mania espirituosa do diretor de cinema Alfred Hitchcock de inserir sua figura (cinema é imagem, é bom lembrar) num plano qualquer de seu filme vem da observação de quadros de pintores medievais ou renascentistas, como Jacopo Tintoretto. O cinema vem das artes que o precederam, mas acabou devolvendo a estas artes —em Mainardi, em Lobo Antunes, em Juremir Machado da Silva— seu status visual, adulterando-as para bem ou para mal ou para nada disso. O cinema, como um criador de imagens, veio a dar na questão digital, na internet, que aprofundou a questão da relação do homem moderno com a imagem: para que ler, se imagens e sons hipnotizam bem mais os homens deste tempo? Os quadrinhos, uma arte que correu paralela com o cinema, lida com imagens e palavras (falta-lhe o som). Em Batman, ano um (1988) o quadrinista americano Frank Miller estabelece uma diferença entre chegar a uma cidade de trem ou de avião; a distância (aérea) civiliza a balbúrdia da passagem do homem pelo cenário de ruas e prédios; há a imagem e há a palavra nos quadrinhos de Miller para edificar uma diferença entre o visual e o escrito.
A teoria da imbecilização do homem é subjetiva. Imbecil é o que não se coaduna com um sentido de superioridade intelectual que adotamos: imbecil é o outro. A superioridade, objetivamente, não existe. O que existe de fato é a transmutação que os contemporâneos sofremos com as enxurradas de imagens, do cinema à internet e à televisão. Ler Balzac (um romancista de realismo clássico) hoje em dia não é a mesma coisa que lê-lo em 1850 ou em 1950. Balzac estaria com os dias contados no futuro, ainda no curso do século XXI? Os cinemas de Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni, com suas heranças necessariamente literárias, também estão por fechar suas portas daqui a pouco? Ou é possível que tudo conviva na dança barroca das percepções? Qual o papel, por exemplo, dum realizador como Quentin Tarantino na aproximação entre seres aparentemente imbecis (ditados pela superfície da imagem) e uma criativadade estética, barulhenta em suas imagens mas inteligente em suas interconexões imagéticas? Isto é: ainda e sempre: a imagem veio para nos imbecilizar ou modificar? Ou: objetiva e cientificamente, isto importa?
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br