O Rigor Desesperado de Tarkovsky
Andrei Tarkovsky transforma o filme Stalker numa reflexão sobre os destinos do homem
Como o italiano Bernardo Bertolucci, o cineasta russo Andrei Tarkovsky é filho de um poeta; no caso de Tarkovsky, um poeta muito conceituado na União Soviética (sabe-se que os poetas russos, diversamente do que ocorre com os prosadores do país, não têm muita penetração no Ocidente, em face da sonoridade diferente da língua russa que dificulta a vida de nossos tradutores). O pai de Andrei é Arseni Tarkovsky e alguns de seus versos ecoam em algumas declamações de Stalker (Stalker; 1979), uma obra-prima cujos elementos de excentricidade futurística foram extraídos do romance de ficção científica de Roadside Picnic mas que se dissolvem num filme experimental e plástico que segue um caminho diverso e ao mesmo tempo irmão de outro realizador russo, Sergei Paradjanov; catalogar Stalker como experiência cinematográfica de ficção científica é superficialidade, assim como é também em relação a um filme anterior de Tarkovsky, Solaris (1972), de roteiro igualmente buscado na literatura.
Algumas declarações de Tarkovsky ajudam a interpretar esteticamente Stalker (perder-se em seus labirintos temáticos não deixa de ser um tanto quanto fútil). Diz Tarkovsky: “A fotografia em cores entra em conflito com a expressividade da imagem.” E acresce: “Talvez a maneira de neutralizar o efeito produzido pelas cores seja alternar sequências coloridas e monocromáticas, de tal maneira que a impressão criada pelo espectro completo seja espaçada, diminuída.” Em Stalker a narrativa começa (e anda por um bom tempo) com as imagens em fosco e rigoroso preto-e-branco; há desespero neste rigor buscado de Tarkovsky, que afirma que, por mais estranho que pareça, é o preto-e-branco que revela o “realismo” psicológico da arte, embora o mundo “real” seja colorido. Depois, adiante, surgem as cores, mas são cores sépias, próximas do preto-e-branco, e assim as coisas visuais seguem muitas vezes mutantes, ficando em alguns quadros mais escuros e ocres difícil de distinguir o que é preto-e-branco do que é filmagem a cores.
Stalker é um filme longo e lento. Busca os abismos filosóficos. Desestrutura o comportamento das personagens em signos-enigma. É muito falado, mas os verbos dos diálogos são ultrarraciocínios: aludem à fé mas mergulham seus estranhos no inferno-cenário de Stalker. Um professor (amargurado) e um escritor (niilista existencialista) são guiados por um “stalker” (guia ou aquele que se esgueira) em busca da Zona, uma região perigosa e cavernosa onde movimentos militares e suspeitas de alienígenas tergiversam quase à beira de cruzamentos de absurdos no âmbito do filme.
Com seus sempre barrocos circunlóquios de câmara e as prolixidades que daí nascem, Tarkovsky transforma Stalker numa reflexão sobre os destinos do homem, mesmo que seus excessos metafóricos às vezes desconversem. Demais, Stalker está repleto de citações, algumas bastante sutis, quando as personagens de Stalker desatarraxam algumas porcas dos trilhos dos trens, estão repetindo o gesto do protagonista do conto Crime meditado (1885), do ficcionista russo Anton Tchekhov. O juiz que interroga o criminoso de Tchekhov é como a câmara delirante de Tarkovsky que perscruta os protagonistas do filme como um “almômetro” (um aparelho que aparece no filme e que uma personagem define como algo para medir a alma).
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br